Um novo estudo descobriu que dar tratamento desparasitante às crianças ainda lhes traz benefícios 20 anos depois

Por Kelsey Piper (VOX)

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Desparasitação, benefícios 20 anos depois? (Arte digital: José Oliveira | Fotografias: Pixabay)

 

Em 1998 e 1999, profissionais de saúde pública no Quénia começaram a tratar crianças em escolas quenianas contra parasitas intestinais comuns, incluindo ancilóstomos, lombrigas, tricurídeos e esquistossomose. Os parasitas, predominantes em áreas pobres, estavam a afectar a nutrição e a saúde das crianças. A esperança era que os programas de tratamento em massa permitissem que uma geração de crianças crescesse sem os efeitos negativos das infestações de parasitas.

Nos anos que se seguiram, as campanhas de desparasitação tornaram-se a iniciativa favorita dos governos nacionais, bem como dos doadores que procuravam fazer donativos eficazes. Algumas investigações sugerem que este tipo de campanhas pode ser das intervenções de saúde pública mais importantes do mundo.

Mas dificilmente tem havido unanimidade sobre a questão da sua eficácia. Estudos como o artigo original de 2003 dos economistas do desenvolvimento Edward Miguel e Michael Kremer daquele grupo de estudantes no Quénia encontraram resultados surpreendentes de campanhas de desparasitação em massa. Os estudantes tornaram-se mais saudáveis, permaneciam na escola por mais anos e ganhavam mais dinheiro em adultos.

Mas outros criticaram esse estudo, e outros estudos de desparasitação em massa não encontraram resultados tão elevados. Como é o caso de muitas outras intervenções de saúde pública, o caso da desparasitação em massa tem algumas provas reais que a sustentam, mas ainda há questões sem resposta e questões em que a investigação existente, para nossa frustração, é contraditória.

Este ano, Miguel e Kremer, juntamente com os co-autores Joan Hamory, Michael Walker e Sarah Baird, voltaram à amostra original do Quénia na qual descobriram pela primeira vez os impactos das campanhas de desparasitação em massa que potencialmente mudam vidas. Acompanhando os participantes originais 20 anos mais tarde, pretendiam responder à pergunta: Os benefícios que descobriram inicialmente com o tratamento desparasitante na infância — que incluía mais tempo na escola e maior rendimento em adultos — continuam a notar-se?

Num novo artigo publicado na série de artigos de trabalho do NBER [National Bureau of Economic Research] em 3 de Agosto, descobriram que sim. “Indivíduos que foram desparasitados em crianças experienciaram aumentos substanciais no seu consumo em adultos, rendimentos à hora, emprego não agrícola e residência urbana”, conclui o estudo.

Os efeitos sobre os rendimentos e os gastos são ligeiramente menores do que os observados num acompanhamento depois de 10 anos, mas mesmo assim são muito notáveis. Dois ou três anos a mais de tratamentos de desparasitação na escola traduzem-se em rendimentos por hora 13% mais altos, gastos de consumo 14% mais altos e probabilidades significativamente maiores de trabalhar fora da agricultura (em empregos que pagam melhor e que dão mais oportunidades de desenvolvimento). Os investigadores calculam que o investimento na desparasitação das crianças do Quénia teve até agora uma taxa de retorno anual de 37%.

“O que isto demonstra é que, mesmo a longo prazo, estes investimentos na saúde infantil têm um impacto duradouro nos padrões de vida das pessoas”, disse-me o autor Edward Miguel.

Os resultados são certamente impressionantes. A maioria das intervenções globais no âmbito da pobreza, mesmo que funcionem, não produzem uma taxa de retorno anual de 37% que dura décadas (o que talvez seja um motivo para cepticismo face às descobertas). É muito raro fazer qualquer coisa nas políticas públicas que ainda tenha efeitos significativos 20 anos depois — muito menos efeitos tão grandes.

Por outro lado, quando as intervenções têm efeitos a longo prazo, tendem a ser intervenções de saúde. Crianças mais saudáveis ​​crescem mais, ficam mais tempo na escola, aprendem mais enquanto estão na escola e têm menos probabilidade de adoecer em adultos. Se alguma coisa pode ter um impacto para toda a vida, será este tipo de intervenções na saúde.

O debate sobre o que o estudo do Quénia nos ensina acerca de parasitas

Este estudo é a contribuição mais recente num longo debate em curso no mundo da saúde pública global sobre os efeitos das campanhas de desparasitação.

Em 2015, os epidemiologistas britânicos Alexander Aiken e Calum Davey publicaram uma reanálise dos dados das escolas originais do Quénia e defenderam que, quando os dados são devidamente analisados, “encontramos poucas provas de alguns efeitos indirectos relatados anteriormente numa intervenção de desparasitação. Os efeitos sobre infecções por parasitas, estado nutricional, desempenho em exames e frequência escolar em crianças das escolas intervencionadas permaneceram praticamente inalterados.”

Outros investigadores objectaram. Claro, o primeiro estudo sobre parasitas não foi perfeito — a sua escolha das escolas não foi suficientemente aleatória, não havia placebos (o que significa que os alunos poderiam ter-se comportado de maneira diferente porque sabiam que estavam no grupo de tratamento) e houve alguns erros reais no artigo. Mas o seu resultado principal foi muito robusto. Desde então, as crianças expostas à desparasitação tiveram resultados de vida mensuravelmente bastante melhores. A reanálise teve por base técnicas estatísticas que não encontrariam resultados significativos neste conjunto de dados, mesmo que houvesse resultados significativos a serem encontrados.

Kremer e Miguel também defenderam as suas descobertas. A desparasitação “é uma política altamente custo-eficaz com provas de vários estudos sobre resultados educacionais e económicos”, disse Kremer à minha colega Julia Belluz em 2015. “Há provas sobre o impacto educacional e económico a longo prazo da desparasitação em vários outros estudos: por exemplo, os trabalhos de Kevin Croke no Uganda, os trabalhos de Owen Ozier no Quénia, e o nosso próprio acompanhamento a longo prazo no Quénia.” (Kremer acabou por ganhar o Prémio Nobel de Economia em 2019).

O novo artigo acrescenta-se a esse conjunto de provas. Mas os críticos provavelmente ainda não irão ficar completamente satisfeitos.

Por exemplo, podem perguntar: Se a desparasitação teve efeitos tão grandes e profundos no Quénia, por que é que efeitos semelhantes não foram encontrados noutros lugares?

“Houve algumas revisões que encontraram um efeito modesto ou nenhum efeito”, concordou Miguel. Mas defendeu que eram principalmente de locais com menor incidência de parasitas, o que tornaria os efeitos muito mais difíceis de detectar.

“Se olharmos apenas para os cenários onde os estudos a curto prazo anteriores foram feitos, e olharmos apenas para os estudos com pelo menos uma incidência de 20%, a curto prazo há ganhos em nutrição”, disse-me. “Mas ninguém recorreu a dados experimentais de uma grande amostra e observou o que aconteceria ao longo do tempo”. E são os efeitos a longo prazo dos programas de desparasitação que são mais notáveis ​​e mais importantes.

Isto levanta outra questão: Como é que o tratamento de parasitas intestinais aumenta o rendimento duas décadas mais tarde? Especialmente quando os impactos médicos a curto prazo são mínimos? “Quanto mais segurança temos que os impactos a curto prazo são pequenos, mais difícil é acreditar que os impactos a longo prazo sejam grandes”, David Roodman, escreveu para a GiveWell, resumindo esta preocupação em 2016.

Alguns dos efeitos da desparasitação ocorrem porque os alunos permanecem mais tempo na escola, mas outras investigações sobre a permanência dos alunos na escola não encontraram efeitos dessa magnitude no rendimento 20 anos mais tarde. Portanto, se a desparasitação está realmente a criar benefícios tão grandes, provavelmente não poderão ser apenas uma consequência de manter os alunos na escola. O que pode ser responsável pelos restantes benefícios?

Uma possibilidade, disse-me Miguel, era os efeitos numa comunidade devido a todos os seus alunos terem permanecido na escola por mais tempo. Os alunos cuja escola fez programas de desparasitação provavelmente irão trabalhar num emprego sobre o qual ouviram um amigo da escola falar, por exemplo. Mas isto também não chega para explicar a dimensão total do efeito. E os alunos que receberam tratamento desparasitante têm agora mais probabilidade de deixar as comunidades rurais em que cresceram para viver numa grande cidade — talvez ser mais saudável faça com que os grandes riscos de se mudar para uma cidade pareçam valer mais a pena.

Seria realmente vantajoso perceber como a desparasitação tem os efeitos que tem no rendimento, mas talvez não sejamos capazes de determinar isso apenas com base em dados de estudos como este. “A análise não resolve a questão de porquê exactamente e por que meios a desparasitação afectou os resultados dos adultos”, reconhece o artigo. É difícil separar cada um dos diferentes caminhos possíveis pelos quais a desparasitação pode afectar as pessoas porque muitos deles estão relacionados — aumentos iniciais no rendimento podem levar a aumentos mais duradouros no rendimento, por exemplo, bem como pode levar as pessoas a serem mais propensas a migrarem, bem como pode levá-las a procurar outros cuidados médicos quando for necessário e levá-las a serem mais saudáveis.

Para além disso, há a questão de quão bem os resultados se generalizam. A maior parte do mundo não tem uma incidência de parasitas tão alta como a do Quénia no final dos anos 1990. Portanto, a desparasitação em massa irá revelar efeitos menores noutras comunidades — e de facto, isso é o que os estudos descobriram. E, mesmo deixando de lado preocupações específicas como essas, os investigadores muitas vezes descobrem que as intervenções funcionam menos bem quando ampliadas e aplicadas noutras regiões, mesmo quando não há um motivo claro para isto.

Ainda restam dúvidas sobre a desparasitação — mas continua a ser uma boa aposta para a saúde pública

Mas, mesmo com algumas perguntas ainda sem resposta, as provas que de facto temos sugerem que os benefícios potenciais a longo prazo são suficientemente grandes para tornar os programas de desparasitação em massa uma das melhores apostas que conhecemos para melhorar o desenvolvimento das crianças nos países pobres.

Estas encontram-se sistematicamente entre as principais instituições de caridade recomendadas pela GiveWell enquanto intervenções custo-eficazes. (A GiveWell considera provável que a desparasitação faça muito menos bem no caso típico do que os resultados medidos do Quénia, mas ainda a considera uma das melhores intervenções de saúde global). Provavelmente, nenhum estudo irá esclarecer todas as nossas dúvidas, mas os estudos podem ser reunidos para formular a melhor estimativa. A minha melhor estimativa é que, pelo menos nas áreas com alta incidência de parasitas, os programas de desparasitação nas escolas são uma ideia muito boa.

E os legisladores têm levado isso muito a sério nas últimas duas décadas, implementando programas de desparasitação em grande escala que trataram muitos dos alunos mais vulneráveis. “Alcançamos mais de 78% de todas as crianças vulneráveis ​​[no Quénia] a um custo médio de 45 cêntimos por criança por ano”, disse o porta-voz da Evidence Action, Gabriel Plata, que dirige o programa de desparasitação Deworm the World. Mas o problema está longe de ser resolvido. “Há uma estimativa de prevalência de 800 milhões de pessoas que ainda estão em risco”, disse Plata.

E as coisas estão a piorar. As escolas estão a ser encerradas em grande parte do mundo devido ao coronavírus, e isso significa que as intervenções de saúde pública que normalmente acontecem nas escolas não estão a acontecer de todo. O novo estudo do Quénia é apenas o nosso último lembrete de que isso se trata de uma perda enorme e de que as crianças afectadas ainda podem sofrer dessa desvantagem daqui a 20 anos.

“O nosso estudo sugere que temos de encontrar uma forma de fazer chegar esses serviços às crianças” disse-me Miguel, “ou então os custos a longo prazo podem ser muito elevados”.

Uma lição importante: Não precisamos de ter resolvido todas as questões sobre a desparasitação para procurar programas de desparasitação custo-eficazes com base nas provas que temos. Ainda há mais coisas para se aprender sobre a desparasitação. Elaborar uma política global de saúde pública é confuso, difícil, frustrante e sempre muito mais fácil em retrospectiva. Mas também é muito importante. Tudo o que podemos fazer é continuar a tentar, continuar a aprender, permanecer curiosos e seguir em frente com o nossa melhor estimativa actual.


Publicado originalmente por Kelsey Piper na VOX, a 6 de Agosto de 2020.

Tradução de Rosa Costa e de José Oliveira.

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