Uma Carteira de Doação

Por Celso Vieira

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Introdução

O texto anterior examinou dois momentos do Altruísmo Eficaz e alguns de seus respectivos pontos fortes e possíveis críticas foram examinados. No final, em vista do alto grau de incerteza envolvido no assunto, a conclusão foi prudencial. A sugestão foi de favorecer uma abordagem mais eclética que contemple tanto causas que propõem soluções imediatas (primeiro momento do AE: mensurabilismo) quanto aquelas que focam soluções futuras (segundo momento do AE: longotermismo). A reflexão, no entanto, foi basicamente teórica. O objetivo agora será de adentrar um pouco mais no âmbito prático.

Investir na bolsa de valores é uma atividade que também lida com alto grau de incerteza. Em vista desse risco, o que os investidores individuais fazem é construir uma carteira de investimentos variada. Assim, eles podem contemplar investimentos mais arriscados nos quais os riscos são maiores mas os lucros, caso ocorram, também, mas sem perder a segurança mais garantida de investimentos mais conservadores, ainda que com ganhos menores. Entre esses dois extremos, é claro, existe uma gama variada de situações intermédias. De qualquer forma, é a partir dessa postura que, na sequência, será construída uma carteira variada de doações.

Considerações iniciais

Para pensar uma carteira de doações, vou seguir a sugestão básica do Altruísmo Eficaz de que se doe, pelo menos, 10% dos seus rendimentos para ajudar os outros. Ademais, essa sugestão terá em vista o doador individual e não grandes empresas ou filantropos milionários que, devido à quantia, deveriam adotar uma posição diferente.

Conservadora

Vamos começar pela postura mais conservadora que se adequa ao primeiro momento do Altruísmo Eficaz (o mensurabilismo). Esse se caracteriza por tentar encontrar as causas que gerem o maior bem possível pelo menor custo através de uma cuidadosa análise dos resultados de cada intervenção. A sugestão é que uma quantia relevante da porção do rendimento destinada ao altruísmo seja investida nesse tipo de ação. Principalmente no caso em questão, em que a quantia disponível não é enorme, parece melhor optar pelo mais garantido.

A sugestão aqui é seguir as organizações indicadas pelas instituições de meta-caridade endossadas pelo Altruísmo Eficaz, atualmente, a GiveWell e a The Life You Can Save. Há uma diferença de abordagem dessas duas organizações. A The Life You Can Save adota o modelo de consulta de especialistas. O que eles fazem é questionar pessoas de várias especialidades como filósofos, acadêmicos e economistas que estão envolvidas no setor social e pedir sugestões das melhores causas a apoiar. Os resultados estão aqui.

Já a GiveWell opta por uma análise quantitativa dos dados fornecidos por cada organização avaliada a partir dos requisitos da avaliadora. O relatório dessas análises fica disponibilizado no site e as organizações indicadas podem ser vistas aqui. Em uma descrição geral como essa, pode parecer que o processo da GiveWell é mais objetivo, mas basta uma leitura do número de dificuldades e incertezas nos processos de quantificação e comparação de intervenções para vermos o quão complexo é o terreno que estamos caminhando. Isso, é claro, não é razão para não investirmos pois, de qualquer maneira, o bem gerado compensa.

Devido a essas incertezas não é possível ser taxativo ao recomendar uma causa entre as propostas por essas duas avaliadoras. Talvez dois grandes grupos que podemos dividir são as intervenções econômicas e as intervenções de saúde. Para quem quer ser muito prudente, parece que as intervenções de saúde geram um retorno mais garantido, ou, pelo menos, mais fácil de quantificar. A intervenção mais recomendada pelas duas avaliadoras é a distribuição de mosquiteiros anti-malária. Outra possibilidade, ainda no caso da saúde, é optar por iniciativas que atuam no combate aos vermes e às doenças tropicais negligenciadas. Os benefícios desse tipo de intervenção vão muito além do mal tratado, gerando impactos positivos em áreas como a educação. Já no caso da intervenção econômica parece que a GiveDirectly (transferência incondicional de dinheiro) é uma das melhores opções.

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A sugestão é que pelo menos 50% do dinheiro doado vá para esse tipo de causa. Durante muito tempo eu doei 100% do que estipulava para a doação para esse tipo de intervenção, o que ainda me parece uma opção plausível.

Conservadora II

Vimos também que o Altruísmo Eficaz se importa com gerar o maior bem possível e, para tanto, usa como critério não a proximidade, conexão pessoal ou espécie de quem vai receber a ajuda, mas sim, a quantidade de sofrimento a ser evitada. Isso obriga a se colocar em consideração também o sofrimento dos animais. Em vista disso, e devido ao grande número e às péssimas condições em que muitos animais vivem (tanto os criados para o consumo humano, mas também na natureza), uma gama variada de organizações que se ocupa da causa animal se apresenta como possível recipiente de doação. Em geral, o Altruísmo Eficaz recomenda aquelas que são indicadas pela ACE (Animal Charity Evaluators). Ver aqui.

Eu já doei algum dinheiro para a causa animal e já fiz serviço voluntário para a ACE, entre outras. Essa, inclusive, é uma boa maneira de complementar a carteira de doações. Podemos reservar 10% do nosso tempo livre para prestar algum tipo de trabalho voluntário e ajudar alguma causa que não ajudamos financeiramente. Porém, o principal motivo da causa animal estar na parte ‘conservadora’ de doações é porque deixar de comer carne e derivados de animais parece ser uma das maneiras mais eficazes de ter um impacto positivo no mundo (pelo menos, no nível das atitudes individuais). Isso acontece devido à redução do sofrimento causado aos animais mas também à redução do impacto ambiental que se segue. Nesse caso, não é preciso nem serviço voluntário nem contribuição financeira, basta mudar o hábito para ter uma atitude altamente altruísta.

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Moderada

A reflexão anterior deixa clara a importância das avaliadoras para se escolher uma organização para apoiar. Disso se segue que também faz sentido doar para essas avaliadoras. O seu âmbito é o que se chama de instituições de meta-caridade. Em vista disso, se abre o leque para contemplar também outras iniciativas que se propõem a identificar intervenções eficazes novas ou existentes mas que não recebem a atenção merecida. Afinal de contas, como as avaliadoras não são capazes de avaliar todas as organizações, pode ser que elas deixem escapar opções bem eficazes.

Eu já doei para as instituições de meta-caridade acima, mas, atualmente, tenho adotado uma outra postura em relação a elas. A GiveWell e a The Life You Can Save fazem um bom trabalho dentro da proposta de cada uma, mas não me parece que elas tenham o que é necessário para fazer descobertas inovadoras acerca de intervenções humanitárias. A GiveWell por ser muito focada na análise de dados e a The Life You Can Save por optar (justificadamente) por intervenções já bem sedimentadas. Em vista disso, acredito que o lugar da inovação em relação ao altruísmo continua sendo os laboratórios de pesquisa ligados às universidades. São eles que possuem o tipo de profissionais necessários para testar e avaliar novas intervenções, em novos lugares, de uma abordagem multidimensional que vai além da quantificação do impacto. Entre essas, a minha preferência é pelo IPA (Inovations for Poverty Action) e o J-Pal (The Abdul Latif Jameel Poverty Action Lab).

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A sugestão seria de doar pelo menos 25% para esse tipo de instituições de meta-caridade. Porém, se a quantia disponível for muito pequena, acredito ser melhor doar 100% para as intervenções que atuam diretamente no combate aos problemas do mundo. Atualmente, a minha divisão é 75% para as ONGs e 25% para meta-caridades.

Mais arriscada

Finalmente chegamos à parte mais arriscada da nossa carteira de doações. Segundo os Altruístas Eficazes longo-termistas a maneira mais promissora de ter o maior impacto positivo no mundo é se dedicando a causas que têm o potencial de extinguirem a humanidade, como as epidemias. Dentre essas, algumas também têm um lado positivo que, se desenvolvido, podem assegurar um futuro muito melhor para a humanidade, como no caso da inteligência artificial.

O Altruísmo Eficaz também tem organizações operando nessas áreas que podem receber doações. Porém, me parece que as contribuições de doadores individuais não têm muito como contribuir para fomentar esses projetos, pois dificilmente uma pequena quantia teria um impacto substancial. Em vista disso, acho que a sugestão aqui seria relacionada à dedicação profissional. Se você tem as capacidades profissionais e técnicas para ter um papel relevante nessas causas provavelmente a melhor escolha que você pode fazer, em termos altruístas, é se envolver com elas através do Altruísmo Eficaz. Isso seria ainda mais importante caso você esteja decidindo agora que carreira profissional seguir no futuro. A comunidade é bem receptiva e, com certeza, você será bem encaminhado e aconselhado.

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Adendo sobre o localismo, re-uso ou causas/ catástrofes imediatas

Esses termos descrevem três modos de agir bem comuns em doadores individuais fora do AE de modo que vale a pena gastar algumas linhas com eles.

Localismo é o termo dado à nossa preferência intuitiva de doar para causas que nos são próximas, tanto fisicamente (como na nossa cidade, estado ou país) quanto psicologicamente (como um problema que nos aflige de maneira particular, talvez por ter atingido um familiar ou algo parecido).

O re-uso é aquele tipo de doação em que temos algo sobrando e que acreditamos que pode ser melhor utilizado por alguém em condições menos afortunadas que as nossas. Exemplos comuns são os brinquedos que nossos filhos não usam mais ou roupas, agasalhos e cobertores que já não usamos.

As causas e/ ou catástrofes imediatas são acontecimentos recentes que, por cobertura da mídia e outros fatores, acabando gerando uma grande comoção a ponto de impelir as pessoas (inclusive os que não têm o hábito de doar) a doarem.

A posição geral do Altruísmo Eficaz em relação a esses comportamentos é crítica. Afinal de contas, em vista dos benefícios comprovados das causas eficazes expostas acima ou dos potenciais das causas futuras esses comportamentos não se justificam. Talvez eles sejam mesmo difíceis de defender (uns mais do que os outros), mas aqui eu vou me contentar com uma versão geral e conciliadora. Os motivos são dois, como sempre, em vista da incerteza, a variação, por si só, teria o potencial de impacto aumentado. Além disso, há uma grande possibilidade que alguém que comece com esse tipo de comportamento, ao se envolver mais com o altruísmo, passe a procurar por melhores causas para ajudar.

Por outro lado, o principal ponto negativo é o fato de esse tipo de atitude substituir as outras contribuições que, de fato, geram muito mais benefício. Em vista disso, a melhor opção parece tratar esse tipo de ajuda como algo extra na carteira de doação. Ou seja, o que quer que seja feito aqui não deveria interferir nos 10% comprometidos às doações em que se chegou a uma escolha e divisão a partir de uma pesquisa mais estudada. (É claro que, para ser coerente, essa adição na quantia de doação deveria ser dedicada às causas mais eficazes, mas a proposta aqui, desde o início, foi de construir uma abordagem mais plural de comportamento dentro de uma cultura da doação.)

Conclusão

No fim, o mais importante é reafirmar:

‒  a importância de uma contribuição constante, que se transforme em um hábito,

‒ que abarque uma porção do nosso rendimento capaz de fazer uma diferença significativa (sem demandar demais), como 10%;

‒ que seja divido após alguma pesquisa e em vista da incerteza. A sugestão foi de 50-75% para causas conservadoras I e II, 25% para instituições de meta-caridade e, talvez, 25% para projetos mais arriscados. Além disso, convém

‒ colocar as atitudes e o tempo como variáveis adicionais nessa equação. Assim, ao mudar hábitos individuais podemos reduzir o sofrimento que causamos e dedicando algum tempo no uso de nossas habilidades podemos expandir a nossa ajuda.

– Por fim, há sempre espaço para uma dose extra de altruísmo às quais podemos estar abertos, mas sem nos esquecermos que também há sempre espaço para uma dose extra de eficácia.

Carteira do AE5


Texto de Celso Vieira.

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