Por Kelsey Piper (Vox)

Coronavírus, devemos ficar em casa? (Arte digital: José Oliveira | Fotografias: Pixabay)
O surto de coronavírus está a piorar, o que está acontecer nos outros países mostra-nos que em breve ainda ficará pior, e os especialistas em saúde pública começaram a pedir às pessoas que pratiquem o distanciamento social — mais isolamento uns dos outros, uma maior permanência em casa por uns dias, muito menos contacto físico com o mundo.
Essas medidas fazem com que algumas pessoas que estão em grupos de baixo risco — jovens, de boa saúde e que não morem com alguém mais vulnerável — façam uma pergunta desconfortável: Calma, será que tudo isto vale a pena? Talvez eu prefira arriscar apanhar o coronavírus e ter uma gripe forte por algumas semanas, em vez de lidar com este transtorno todo na minha vida?
Esta não é uma má pergunta. Mas uma razão pela qual tantas pessoas estão a coloca-la é por causa de uma grande falha na comunicação sobre o coronavírus. Começando na Casa Branca, a maior parte das comunicações tem sido sobre como reduzir o risco pessoal de contrair o coronavírus. Este vírus, que é muito mais perigoso que a gripe, mesmo para pessoas jovens e saudáveis, justifica fortes precauções para o seu próprio bem.
Mas isto não é tudo. O facto é que o distanciamento social e as outras precauções que estão a ser recomendadas não se destinam apenas à sua própria protecção. Trata-se de proteger as pessoas da sua comunidade, especialmente as vulneráveis.
Eis outra maneira de pensar sobre isto: se é jovem e saudável, deve tomar precauções, pois isso pode acabar por salvar a vida a alguém. De facto, tomar precauções como o distanciamento social é provavelmente uma das coisas mais importantes que pode fazer para proteger as pessoas idosas e doentes da sua comunidade e proteger a nossa sociedade dos tipos de efeitos catastróficos que o vírus teve nos países onde ultrapassou as capacidades dos socorristas, dos hospitais e das morgues [Br. necrotérios].
Nos EUA, não estamos acostumados a enquadrar as escolhas individuais neste tipo de linguagem. Seria chocante (por muitas razões) ouvir o Trump na TV a apelar para trabalharmos em casa e cancelarmos as festas como um acto de patriotismo, como um acto de altruísmo, como um sacrifício que as pessoas saudáveis precisam de fazer em prol dos menos saudáveis e dos que não tenham seguros de saúde.
Mas isto é exactamente o que representa tomar estas precauções: um acto de altruísmo. Como Zeynep Tufekci argumentou na Scientific American em Fevereiro: “Devemos preparar-nos, não porque possamos sentir-nos pessoalmente em risco, mas para ajudar a diminuir o risco para todos. É nosso dever prepararmo-nos não porque estejamos a enfrentar um cenário apocalíptico fora do nosso controlo, mas porque podemos alterar todos os aspectos desse risco que enfrentamos como sociedade.”
A crise com que nos deparamos não é apenas mera inconveniência; tem uma dimensão moral que não podemos deixar de observar. Sim, é realmente inconveniente. Sim, ainda não é obrigatório por lei — e se tudo der certo, podemos melhorar as coisas antes que isso aconteça. E sim, pode ser um pouco embaraçoso e socialmente estranho tomar essas precauções, caso as pessoas à sua volta ainda não tiverem percebido que isso é necessário.
Mas estes inconvenientes não são nada face ao que podemos perder se continuarmos a espalhar o coronavírus: os nossos avós, os nossos pais, os médicos e os enfermeiros que iriam cuidar deles, os nossos amigos que estão a lutar contra o cancro [Br. câncer], ou a recuperar de uma cirurgia, ou imunossuprimidos, ou dependentes de alguém que o seja. Caso seja jovem e saudável, o distanciamento social pode ser um incómodo para si. Mas, no meio de uma das maiores crises de pandemia deste século, é uma oportunidade de ser um herói para as outras pessoas.
Precisamos de facilitar as coisas para evitar que as pessoas vulneráveis fiquem doentes
Um dos objetivos dos especialistas em saúde pública, agora que a contenção está fora de alcance em grande parte dos EUA, deve ser garantir que as pessoas para as quais é mais perigoso ficar doente tenham a possibilidade de permanecer saudáveis.
Os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CCD) identificaram como um grupo de alto risco as pessoas com mais de 60 anos de idade ou aquelas que são imunocomprometidas. A agência recomenda que em larga medida esse grupo permaneça em casa, mas alguns deles precisarão de sair de casa a certa altura — para compras que não podem ser entregues na sua área de residência, para consultas médicas necessárias, para os trabalhos dos quais não se possam despedir.
O CDC e a OMS recomendam várias medidas básicas para ajudar a impedir a propagação do Covid-19:
- Lave as mãos frequentemente durante pelo menos 20 segundos
- Quando tossir ou espirrar coloque à frente um lenço de papel e depois deite-o ao lixo.
- Limpe e desinfecte os objectos que são tocados com frequência.
- Fique em casa quando estiver doente.
- Entre em contacto com um profissional de saúde se tiver sintomas de Covid-19. Os mais comuns são febre e tosse seca.
- NÃO toque no seu rosto.
- NÃO viaje se tiver febre e tosse.
- NÃO use máscara facial se estiver bem.
As orientações podem mudar à medida que o surto se espalha. Mantenha-se informado e seguro, com o guia da Vox para o Covid-19.
Quanto mais o vírus se espalha, mais arriscadas se tornam essas actividades inevitáveis. Uma viagem que o coloca em contato com 10 pessoas é bastante segura se apenas algumas pessoas na sua região metropolitana tiverem o vírus — mas potencialmente mortal se muitas delas o tiverem. Além disso, algumas pessoas com vírus podem ser assintomáticas, por isso é possível que se possa espalhar o vírus sem se saber que está doente.
Pelo menos 20% da população está num grupo de risco para contrair o coronavírus, o que inclui adultos mais velhos, mas também pessoas em quimioterapia, que vivem com HIV/SIDA [Br. AIDS], com problemas respiratórios pré-existentes ou que apenas estejam a recuperar de uma outra doença grave. Isso significa que, se contrair o coronavírus e o propagar para três outras pessoas — e estatisticamente, a pessoa comum que o contrai e não toma nenhuma medida de distanciamento social propaga-o para duas ou três pessoas — há uma hipótese razoável, e assustadora, de o propagar para alguém a quem possa ser mortal.
Esse é um risco que nunca se esperaria que fosse assumido de maneira despreocupada.

Javier Zarracina e Christina Animashaun / Vox
Mas esta não é a única consideração em causa. Há também o risco de que as pessoas para quem o propague, por seu turno o propaguem para pessoas em risco. No geral, uma maneira de pensar sobre o que acontece quando se contrai e propaga o coronavírus é que o tempo de duplicação da epidemia na sua região diminui. E essa propagação mais rápida pode custar vidas.
Precisamos de desacelerar os casos de coronavírus
Se contrair o coronavírus neste momento, mesmo que precise de hospitalização — e as provas sugerem que até 15% das pessoas infectadas possam precisar — provavelmente sobreviverá. A partir de eventos como o desastre de navios de cruzeiro Diamond Princess e a partir dos relatórios de países que contiveram bem os seus surtos (consulte Taiwan e Singapura), temos motivos para acreditar que a taxa de mortalidade por coronavírus pode estar abaixo de 1% quando há atendimento médico adequado.
Mas e quando não há? Em Wuhan, na China, quando a crise agravou, os pacientes foram afastados dos hospitais porque não havia camas para eles. No Irão, foram partilhadas on-line imagens de centenas de pessoas a tentar desesperadamente chegar ao hospital. Na Itália, os médicos estão a avisar que estão a montar serviços de cuidados intensivos nos corredores e que as Unidades de Tratamento Intensivo (UTI) estão tão sobrecarregadas que muitos pacientes estão a morrer desnecessariamente .
Problemas como estes poderiam acontecer nos EUA? Sim. Um artigo divulgado no mês passado pelo Center for Health Security examinou a sobrecarga de trabalho dos hospitais caso o coronavírus se espalhe amplamente pelos EUA.
Estimativas de planeamento da pandemia da Health and Human Services | |
Cenário moderado (semelhante a 1968) | Cenário Muito Severo (tipo 1918) |
38 milhões que necessitam de cuidados médicos | 38 milhões que necessitam de cuidados médicos |
1 milhão de hospitalizações | 9,6 milhões de hospitalizações |
200 000 que precisam de UTI | 2,9 milhões a precisar de UTI |
Mesmo que não seja um entre os 38 milhões de americanos que precisarão de assistência médica se o vírus se espalhar descontroladamente por toda a nossa população, provavelmente conhece alguém que precisará. E se as coisas piorarem, o ritmo a que o vírus se espalha pela população determinará se o nosso sistema de saúde virá a estar sobrecarregado.
“É impossível evitar uma epidemia aqui nos EUA”, disse o ex-comissário da Administração de Alimentos e Medicamentos, Scott Gottlieb, ao USA Today na segunda-feira numa entrevista em que pediu medidas de distanciamento social muito mais abrangentes em todo o país. “Temos o potencial de limitar o alcance da epidemia, mas precisamos de tomar medidas mais agressivas. Caso se implemente etapas de mitigação, consegue-se diminuir a taxa pela qual as pessoas contraem o vírus. Acaba por se alongar a epidemia, ela dura mais, mas não atinge o pico mais alto. Neste caso, pretende-se diminuir a taxa de infecção para que se consiga gerir a epidemia com o sistema de saúde.”
Este ponto é ilustrado nesta adaptação de um gráfico do CDC:
Tomar medidas para tornar o surto mais lento — tais como tomar precauções consigo mesmo enquanto pessoa saudável — reduzirá as hipóteses de sobrecarregarmos o nosso sistema hospitalar, o que aumenta a probabilidade de todos os que precisam de hospitalização a venham a receber. Atrasar o pico da epidemia, mesmo até por algumas semanas, pode salvar vidas, garantindo que uma percentagem maior dos casos tenha acesso a cuidados médicos.
Existem dados históricos para fundamentar este gráfico. Em 2018, os investigadores compararam os efeitos da gripe de 1918 em St. Louis, que implementou medidas de distanciamento social, e na Filadélfia, que não o fez.

Das “Intervenções de saúde pública e intensidade epidémica durante a pandemia da gripe de 1918”, PNAS . Richard J. Hatchett, Carter E. Mecher e Marc Lipsitch
Pode-se ver que as medidas tomadas em St. Louis salvaram vidas e também atrasaram e suavizaram o pico do surto. É isso que pretendemos e é algo em que se poderá ajudar pessoalmente a alcançar tomando precauções.
Não nos pedem frequentemente para ajudar outras pessoas
Muitos anúncios de saúde pública sobre o vírus garantiram às pessoas que o seu risco pessoal era provavelmente baixo. Isto, claro, é verdade, — caso seja jovem e saudável. Mas isto pode ser interpretado por algumas pessoas que, devido ao risco pessoal poder ser baixo, não precisam tomar nenhuma precaução.
Eis uma mensagem melhor: o coronavírus é uma ameaça de alto risco para muitos dos nossos familiares, amigos e vizinhos. O risco para o nosso país e para as nossas comunidades é alto. O risco para os nossos pais e avós é alto. O risco para aqueles de nós submetidos à quimioterapia ou que estejam imunocomprometidos por outros motivos ou com problemas de saúde subjacentes é alto.
E os restantes de nós podem ajudar. Raramente uma pessoa normal tem a oportunidade de, com pequenos sacrifícios, salvar a vida dos seus amigos, vizinhos e parentes. Mas agora, temos essa oportunidade. Ao tomar fortes medidas de distanciamento social antes de serem exigidas na sua comunidade — cancelando ou não participando em festas e em grandes eventos; mudando os serviços religiosos para reduzir as actividades de transmissão de doenças; se tiver a sorte de ter um emprego que o permita, trabalhando em casa ou deixando os seus funcionários trabalharem em casa — pode salvar a vida das pessoas.
Se não tem motivos para estar preocupado consigo mesmo, isso é óptimo, mas os nossos concidadãos que são vulneráveis também têm importância, e podemos ajudar a salvá-los. Tome medidas em prol das pessoas doentes, ou fracas, ou velhas e construa um país que possa dar resposta quando estiver doente, fraco ou velho, porque um dia isso irá acontecer-lhe.
Publicado originalmente por Kelsey Piper na Vox, a 11 de Março de 2020.
Tradução de Rosa Costa e de José Oliveira.