África, até agora, foi poupada do pior do coronavírus. Isso pode mudar em breve.

Por Alex Ward (Vox)

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Coronavírus, em África ainda vai ser pior? (Arte digital: José Oliveira | Fotografias: Pixabay)

O continente africano é extremamente vulnerável a um surto em larga escala do coronavírus, mas não apenas da maneira que se possa imaginar.

Quase todos os países de África registaram pelo menos um caso de Covid-19, levando mais de 30 países desse continente a impor encerramentos (lockdowns) para diminuir a propagação. A 20 de Abril, a África Subsariana tinha mais de 20 000 casos confirmados de coronavírus e mais de 1000 mortes confirmadas.

Os números mais baixos do que outros podem significar que as nações africanas agiram cedo para impedir um surto mais intenso, mas também que houve muito poucos testes nesse continente e que uma população jovem pode não sofrer tão visivelmente como sucede em lugares como a Europa. Por outras palavras, pode haver um surto maior que ainda não foi identificado oficialmente.

De qualquer das maneiras, os especialistas alertam que esses números baixos provavelmente não irão durar. Milhões em África compram a comida no dia em que a comem. Armazenar grandes quantidades de alimentos não é simplesmente uma opção viável, o que significa que a viagem diária ao mercado é vital para muitos. O pedido dos governos para que as pessoas se distanciem socialmente, provavelmente não funcionará a longo prazo.

Uma enorme crise de coronavírus “rapidamente se tornaria numa igual crise de segurança alimentar”, disse-me Sean Granville-Ross, especialista em economia e agricultura da organização humanitária Mercy Corps do Quénia. “Sabemos que milhões de pessoas em África vivem na linha da pobreza ou um pouco acima desta. Com o menor choque ou crise, seriem derrubados para baixo da linha da pobreza.”

Isso apenas agravará os desafios já conhecidos que África enfrenta. Os sistemas de saúde de muitos países estão mal equipados para tratar pacientes sem o apoio de organizações internacionais. Muitos governos não têm recursos suficientes para informar os cidadãos sobre quais são as precauções que devem ser tomadas para evitar o vírus, como lavar as mãos por 20 segundos ou manter um metro e meio de distância. E milhões no continente, principalmente no leste e sul, já sofrem de outras complicações, como o HIV/SIDA, que podem torná-los mais vulneráveis ​​à infecção pela Covid-19.

Essas e outras preocupações levaram a Organização Mundial de Saúde (OMS) a estimar que o continente poderia assistir a 10 milhões de casos de coronavírus nos próximos seis meses. E na semana passada, um relatório do Imperial College de Londres previu que cerca de 300 000 pessoas nesse continente poderiam morrer da doença. Um outro relatório da Comissão Económica das Nações Unidas para África disse que, no pior cenário, sem intervenções contra a doença, mais de mil milhões [Br. 1 bilhão] — sim, com um “b” — podem ser infectados e 3,3 milhões podem morrer.

São muitas más notícias, mas existem algumas razões para optimismo: África é um continente extremamente jovem. Mais de 98% da população tem menos de 65 anos. Isso poderia resultar num número menor de mortes do que em lugares como a Europa, onde a população é mais envelhecida.

Muitos países africanos também têm experiência em lidar com grandes surtos de doenças, especialmente a crise do Ébola de 2014 na África Ocidental. E as organizações internacionais estão a trabalhar para fornecer assistência e formação.

Ainda assim, os problemas maiores do continente, como a pobreza generalizada, a má governação e os encargos de dívidas enormes, significam que a crise do coronavírus provavelmente irá agravar os problemas de África no futuro próximo.

“Estou preocupado pelo menos até ao próximo ano”, disse Michelle Gavin, embaixadora dos EUA no Botsuana de 2011 a 2014.

A maioria dos países africanos agiu rapidamente para impedir uma propagação maior

A 3 de Fevereiro — semanas antes do novo coronavírus chegar a esse continente — os Centros de Controle e Prevenção de Doenças de África formaram uma força de intervenção para combater o vírus. “Esta doença é uma séria ameaça à dinâmica social, crescimento económico e segurança de África”, disse o Dr. John Nkengasong, director do CCPD de África. “Se não detectarmos e contivermos surtos de doenças precocemente, não poderemos alcançar os nossos objectivos de desenvolvimento”.

O principal objectivo da organização era aumentar a detecção por meio de testes e contenção, especialmente nas fronteiras. Muitos países africanos já tinham experiência no estabelecimento de postos de controle semelhantes para doenças como o Ébola.

A África Subsariana, assim, teve uma vantagem em alguns aspectos antes que fosse detectado o primeiro caso do continente em 27 de Fevereiro na Nigéria. Mas houve uma complicação: o primeiro caso foi um italiano infectado, porém assintomático, que viajou para o país e passeou livremente por dois dias antes do seu caso ser detectado. Felizmente, como me disse a directora técnica do escritório da OMS na Região Africana, Mary Stephen, os médicos na Nigéria conseguiram rastrear os 121 contactos desse homem e descobriram que apenas uma pessoa testou positivo para a Covid-19.

Outros países agiram rapidamente quando o primeiro caso na Nigéria foi confirmado. Países como o Zimbabué, o Gana e a Nigéria proibiram grandes reuniões públicas, fecharam escolas e impuseram grandes encerramentos. Em meados de Março, algumas nações, como o Sudão, também fecharam as suas fronteiras aos viajantes da Europa, China e EUA para afastar quem viajasse das zonas críticas do coronavírus no mundo. Na verdade, levou apenas algumas semanas — e não meses — para ver uma resposta ao coronavírus em todo o continente.

Essa resposta não foi uniforme em todo o continente e, em alguns lugares, foi desastrosa.

No Quénia, por exemplo, inicialmente o governo impôs o recolher obrigatório, não um encerramento, para impedir a propagação do vírus. Especialistas dizem que o recolher obrigatório, como o Washington Post relata “exige que as pessoas permaneçam em suas casas do anoitecer ao amanhecer”, não foi decretado, pois era difícil para muitos trabalhadores voltar para casa antes do recolher obrigatório. A polícia também reprimiu brutalmente os infractores, matando até adolescentes. No final de Março, o número de mortos por tiroteios policiais relacionados com o recolher obrigatório superou o número de mortes por coronavírus no país.

Na Tanzânia, o presidente populista John Magufuli também tentou minimizar a ameaça do coronavírus. No início de Abril, Magufuli continuou a pedir aos cidadãos que comparecessem aos cultos religiosos porque, segundo ele, a única coisa que poderia derrotar a doença era a assistência divina. “O coronavírus não pode sobreviver no corpo de Jesus Cristo, será queimado”, disse Magufuli no mês passado. “É exactamente por causa disso que não entrei em pânico porque tomei a Sagrada Comunhão.”

Mas, em geral, o negacionismo do coronavírus expresso por líderes do Brasil ao México, dos Estados Unidos à China pode ser um problema menor entre os que estão no poder no continente africano. “Depois de ver as imagens de Itália e da cidade de Nova York, é mais difícil convencer-se de que alguém está a inventar aquilo tudo”, disse Gavin, ex-embaixador dos EUA no Botsuana que agora está no grupo de reflexão do Conselho de Relações Exteriores.

Para alguns especialistas, esses números são baixos não apenas porque o vírus chegou tarde a esse continente, mas também porque os países africanos agiram com rapidez e eficácia. Outros especialistas, no entanto, observam que os testes e o rastreamento não são generalizados, o que significa que os números reais da infecção são provavelmente muito mais altos.

A partir desta semana, o CCPD de África distribuirá 1 milhão de testes por todo o continente. Isso é um começo, mas mesmo o Director Nkengasong observou que 15 milhões de testes podem ser necessários nos próximos três meses para este continente de mais de mil milhões [Br. 1 bilhão] de pessoas. Parte da razão para a enorme falta de testes é que os países mais ricos superaram as propostas dos mais pobres para adquirir materiais essenciais.

Ainda assim, a resposta rápida de África pode ter sido suficiente para evitar o pior. Embora os resultados tenham sido diferentes em todo o mundo, os países que agiram com rapidez normalmente têm menos casos confirmados de coronavírus, menos mortes ou ambos.

O que realmente preocupa os especialistas, no entanto, são as maiores questões estruturais que afectam África — governos fracos, insegurança alimentar e assistência médica precária — que poderiam pôr em risco todo o bom trabalho já feito para impedir que o coronavírus assolasse o continente.

“Não sei o que significa realmente «achatar a curva» nesta parte do mundo”

Durante as principais crises de saúde pública, os governos geralmente intervêm para ajudar os seus cidadãos a aguentar-se. Isso não é um dado adquirido em muitos países africanos. Apenas um punhado de governos em África, incluindo África do Sul e Ruanda, ainda tem recursos para patrulhar as ruas ou disseminar informações precisas de saúde ao público, sem falar em fornecer uma rede de segurança social de emergência para indivíduos vulneráveis ​​afectados economicamente.

E mesmo que um governo quisesse comprometer mais recursos para combater o coronavírus ou reforçar a sua economia durante a crise, a maioria tem grandes dívidas para com os Estados Unidos, a China ou países europeus.

Não é surpresa, portanto, que os líderes da África Subsariana estejam a pressionar para um alívio da dívida em larga escala como uma das melhores maneiras de combater a doença. O G-20 — um grupo de países representando as 20 economias mais ricas do mundo — já “concordou em congelar os pagamentos bilaterais de empréstimos governamentais para países de baixos rendimentos até ao final do ano”, relata o Financial Times.

Mas Ngozi Okonjo-Iweala, enviada especial da União Africana, não está satisfeita. “Acredito que até ao final deste ano não será o adequado. Precisamos de um prazo de dois anos”, disse ela ao Politico na semana passada. “parece-me que é isso que dará tempo suficiente aos países africanos para poder lidar com as enormes consequências da pandemia.”

A China, um dos maiores credores deste continente, está a hesitar face à ideia de alívio da dívida em grande escala por medo de que se possa estabelecer um mau precedente de perdão de dívidas. De acordo com o Wall Street Journal, as autoridades chinesas pediram às autoridades de pelo menos um país, a Zâmbia, que forneçam garantias em troca da ajuda de Pequim — neste caso, activos das minas de cobre da Zâmbia.

Sem o alívio da dívida em larga escala e a longo prazo, dizem os especialistas, há poucas hipóteses de a maioria dos governos africanos conseguir combater eficazmente a doença ou os seus impactos económicos.

Outras preocupações económicas, principalmente a redução do comércio e a perda de empregos, certamente irão tornar a pobreza e a fome em África mais incontroláveis.

Brian Bogart, que trabalha no Programa Mundial de Alimentação da ONU na África do Sul, disse que o sistema mundial de distribuição de alimentos irá sofrer o impacto do abrandamento económico global. Os produtores de alimentos terão dificuldade em obter acesso ao crédito e às cadeias de abastecimento necessárias para o cultivo e para o envio para o mercado. Mesmo itens simples como fertilizantes químicos para ajudar as plantas a crescer em solo seco serão mais difíceis de encontrar.

A um nível mais particular, a perda de emprego tornará a necessidade de alimentos ainda mais crítica. Isso, por sua vez, dificultará a manutenção das medidas de distanciamento social. Mais de 1 milhão de pessoas já estão desempregadas na Etiópia, por exemplo, e o PIB deste continente deverá cair drasticamente este ano.

Um dia que seja sem ganhar dinheiro significa menos recursos para comprar comida. Isto é mais devastador do que parece, como Granville-Ross, da Mercy Corps, me disse: os pobres normalmente compram comida no dia em que a consomem. Eles não têm os recursos ou a capacidade de armazenar grandes quantidades de alimentos por semanas a fio. Assim, apesar dos supermercados permanecerem abastecidos, os artigos costumam ser muito caros ou grandes demais para que os pobres possam comprar lá regularmente.

Muitas pessoas em África gastam a maior parte do seu rendimento em alimentos. (Em termos de comparação, em 2018, os americanos gastaram uma média de 9,7% do rendimento pessoal disponível em alimentos, de acordo com o Departamento de Agricultura dos EUA).

Esta é uma grande preocupação. Cerca de um quinto de todas as pessoas em África — cerca de 250 milhões — não tinha acesso regular a alimentos mesmo antes do ataque do coronavírus, enquanto 25% das pessoas na África subsariana já estavam subnutridas.

E cenas tão caóticas de pessoas a lutar por comida, como a do bairro de lata de Kibera em Nairobi, na semana passada, tornam-se mais comuns. Enquanto isso, os produtores agrícolas estão a enfrentar não apenas os desafios do coronavírus, mas também as infestações de gafanhotos que dizimam as colheitas e as pastagens. (Especialistas dizem que se espera uma segunda onda de gafanhotos que poderá ser 20 vezes maior do que nos dois primeiros meses anteriores).

Tudo isso significa que, para milhões em África, ficar em casa longe do trabalho por alguns dias para evitar espalhar ou contrair o coronavírus não é uma opção. “As pessoas pobres preferem a lotaria da infecção em vez da certeza da fome”, escreveram os especialistas africanos Alex de Waal e Paul Richards para a BBC, na semana passada.

A água também custa dinheiro. Por isso, lavar as mãos por 20 segundos com sabão torna-se mais difícil quando uma família tem de escolher entre os alimentos e o saneamento, diz Granville-Ross. Essas tensões são particularmente graves em países como o Níger ou Angola.

“Não há como manter o distanciamento social”, disse-me Gavin do Conselho de Relações Exteriores, o que a leva a acreditar que “não pode haver apenas um manual de saúde pública para esta crise”.

E por último, a capacidade deste continente de cuidar dos doentes não está bem desenvolvida.

“A maioria dos países tem pelo menos um centro de tratamento, mas variam entre alguns com menos de 10 camas e outros com 100 camas”, disse Michel Yao, o director de operações de emergência da Organização Mundial da Saúde em África, à RFI da França em Março.

Um relatório de Março da OMS analisou como os países de África estariam preparados para lidar com um surto de coronavírus. O gráfico abaixo mostra que, embora alguns países africanos tenham o estatuto “adequado” de preparação para lidar com um influxo de casos de coronavírus, a maioria, na melhor das hipóteses, tinha um estatuto “moderado”.

O mesmo relatório também citou outros problemas, incluindo que pouco mais de metade dos países analisados ​​tinha equipamentos de protecção individual (EPI) prontamente disponíveis para os profissionais de saúde.

G1-Africa

Organização Mundial de Saúde

“Não sei o que significa realmente «achatar a curva» nesta parte do mundo”, disse-me Bogart, “simplesmente porque com certeza não há o mesmo nível de serviços ou infra-estruturas de saúde para sobrecarregar”.

Mas Stephen, da Sede da OMS em África, na República Democrática do Congo, expressou o optimismo de que os abastecimentos de assistência médica irão melhorar nas próximas semanas. Antes da crise, havia apenas dois laboratórios neste continente que poderiam ser usados ​​para testes de coronavírus, disse-me ela. Agora, existem 44.

E o sistema de “vigilância integrada de doenças” em vigor desde 1988 — que permite que os membros da comunidade local avisem as autoridades de saúde se alguém estiver doente — continua a funcionar bem.

Quando um voluntário da comunidade informa as autoridades de saúde, uma equipa de epidemiologistas vai até à casa e pergunta se alguém se sente doente. Também vão às casas mais próximas apenas “porque algumas pessoas estão sempre a esconder-se”, disse a Stephen. Se os sintomas da pessoa corresponderem aos que se esperam de uma infecção por coronavírus, os médicos solicitarão os contactos dessa pessoa antes mesmo de os resultados do teste voltarem.

Essa é a mesma estratégia que os profissionais de saúde africanos usaram durante o surto de Ébola, observou a Stephen. A experiência deste continente com essa crise preparou os médicos e outros para aquilo que provavelmente virá a seguir. “Qualquer experiência com qualquer surto é uma experiência valiosa no combate à Covid-19”, continuou ela.

Também é uma ajuda o facto de menos de 2% da população de África ter mais de 65 anos. O que significa que uma alta taxa de mortalidade por coronavírus na população mais vulnerável — adultos mais velhos — pode não ser o maior medo.

Dito tudo isto, a Stephen ainda está ciente do grande desafio que temos pela frente. “Existe uma capacidade muito, muito limitada nas suas infra-estruturas para a gestão dos casos graves”, disse-me ela, acrescentando que a falta de camas e de ventiladores nas Unidades de Tratamentos Intensivos representa o maior problema.

O bom trabalho neste continente para superar a crise, pode ter salvo muitas vidas. Mas os maiores problemas de África significam que muitos mais permanecem em risco. A esperança é que os piores cenários para África — centenas de milhares de mortos e talvez até mil milhões [Br. 1 bilhão] de infectados — não aconteçam.


Texto publicado originalmente por Alex Ward na Vox, a 21 de Abril de 2020.

Tradução de Rosa Costa e de José Oliveira.

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