Estamos em triagem a cada segundo de cada dia

Por Holly Elmore (EA Forum)

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Fazer triagem, é bom ou mau? (Arte digital: José Oliveira | Fotografias: Pixabay)

Segue-se um spoiler ouça o episódio antes, caso não queira ouvir primeiro um resumo aproximado.

Gostei bastante do episódio “Fazer o papel de Deus” do RadioLab.

O tema é a triagem, a prática de atribuir prioridade a diferentes pacientes na medicina de emergência. Por extensão, a triagem significa racionar recursos escassos. O episódio trata a triagem como um fenómeno raro – de facto, sugere que os protocolos de triagem médica só foram levados muito a sério nos EUA depois do Furacão Katrina – mas a triagem não é de todo um fenómeno raro. Estamos a fazer triagem em cada decisão que tomamos.

 …

As histórias no “Fazer o papel de Deus” são cativantes, particularmente a história de um hospital de Nova Orleães transformado num inferno numa questão de dias, depois de ficar sem electricidade durante o furacão Katrina. A Sheri Fink, do New York Times, discute os acontecimentos que relatou no seu livro “Cinco Dias no Memorial: vida e morte num hospital devastado pela tempestade”. Os detalhes dessa visão ao pormenor são difíceis de suportar. Após a evacuação da unidade de cuidados intensivos, o pessoal do hospital foi forçado a estabelecer a ordem pela qual seriam evacuados os restantes pacientes, pois movê-los seria trabalho braçal muito duro sem os elevadores e os helicópteros e barcos só chegavam esporadicamente para os levar embora. Os esgotos estavam a recuar para o interior do hospital e o calor extremo estava a causar convulsões a alguns pacientes e animais de estimação.

Entretanto, nas notícias, o pessoal ouviu relatos exagerados de pilhagem e desordem na cidade. Acreditando que não tinham escolha, alguns dos funcionários começaram a pensar que eutanizar os pacientes mais doentes (e os mais difíceis de transportar para a evacuação) poderia ser a coisa mais misericordiosa a se fazer. Alegadamente alguns pacientes foram eutanizados, embora nenhum dos envolvidos tenha sido acusado.

Tragicamente, as possíveis mortes tiveram lugar no mesmo dia em que os veículos de salvamento regressaram.

O cerne desta história é que ceder à lógica da triagem coloca o pessoal do hospital numa situação que pode resvalar para se “fazer o papel de Deus”. O episódio depois continua com a discussão de formas de formalizar a triagem para que as pessoas não tenham de confiar na sua própria decisão numa altura tão difícil. (A triagem utilitarista é discutida, e quase se pode ouvir a aversão dos oradores). Muito frequentemente, as preocupações com a consciência do cuidador são o centro das atenções, embora ninguém reconheça em que medida isso é egoísta. A triagem é retratada de forma insensível ao longo de todo o processo, como se as pessoas que estão a ser forçadas a fazer a escolha tivessem de alguma forma de ser culpadas por se colocarem nessa situação.

Mas foi a última história que me fez querer escrever isto. A Sheri Fink, a repórter convidada, descreve uma mulher que conheceu num hospital americano de ajuda à emergência no Haiti. Nathalie era uma mulher encantadora de meia-idade cuja vida foi poupada porque foi para o hospital por causa de dificuldades respiratórias. Quando o terramoto ocorreu, toda a sua família estava em sua casa, que desabou e matou-os a todos. Nathalie estava a fazer uma cara corajosa, feliz apenas por estar viva, e irradiava gratidão pelos cuidados que tinha recebido.

Mas havia um problema. A Nathalie precisava de oxigénio, e o hospital (aliás, o país) não tinha oxigénio suficiente para todos. Como ela sofria de insuficiência cardíaca, as enfermeiras da triagem tinham decidido que não deveria receber mais oxigénio e que devia regressar a um hospital local gerido pelo Haiti, onde provavelmente morreria. Fink menciona com pesar que a enfermeira que tomou a decisão nunca tinha conhecido a Nathalie, como se isso fizesse alguma diferença.

Fink foi com ela na ambulância até ao novo hospital, onde ela tossiu e vomitou e não recebeu a ajuda do oxigénio. Isto partiu o coração de Fink. Mas quando Nathalie chegou ao hospital haitiano, um médico inteligente fez o que pôde para drenar o líquido dos seus pulmões e conseguiu fazer com que ultrapassasse a crise sem oxigénio suplementar.

 

Esta história reforçou para Fink a fantasia de que nunca se tem de escolher – que quando se decide escolher já se está a ir longe demais. Fink ficou tão comovida por Nathalie que a ajudou a obter um visto humanitário para os EUA. Mas afinal, Nathalie precisava de um transplante de coração, e morreu antes de poder obter um. No entanto, diz Fink, ela foi um deleite para todos os que a conheceram naqueles hospitais, e até fez uma colecta para os outros pacientes que ficaram no Haiti. Por isso, quem eram os médicos para decidir que ela não merecia todas as oportunidades?

Esta é, evidentemente, a questão errada. É claro que Nathalie merecia todas as oportunidades. Em primeiro lugar, ninguém deveria ter de sofrer de insuficiência cardíaca. Mas será que ela merecia o oxigénio mais do que todas as outras pessoas que precisavam de oxigénio naquele hospital? Não. Será que o tempo de vida de Nathalie era mais importante do que a maior quantidade de tempo que os médicos poderiam dar a outros pacientes, empregando o oxigénio cuidadosamente? De modo nenhum.

Em parte alguma do episódio foram discutidos os beneficiários da triagem. Não houve a tentativa de determinar quantas mais pessoas foram salvas porque o pessoal hospitalar tomou medidas difíceis e essenciais. Não houve qualquer discussão sobre quem deveria ter morrido nessa situação em vez da Nathalie – alguém com muitos anos de saúde pela frente? Duas pessoas que poderiam ter sido salvas com a mesma quantidade de oxigénio? Há apenas a negação de que alguém tivesse sequer de morrer. Não há gratidão pelas vidas a mais que foram salvas – apenas aversão à perda. Não há qualquer reconhecimento de que Fink muito provavelmente também não teria querido que qualquer outro paciente morresse, se os tivesse conhecido, muito menos o reconhecimento de que as pessoas importam, quer as tenhamos conhecido pessoalmente ou não.

Fazer melhores escolhas através de uma triagem consciente é “fazer o papel de Deus” tanto como abdicar despreocupadamente da responsabilidade dos efeitos das nossas acções. Ambas as escolhas são escolhas para deixar uns viver e outros morrer. A única diferença é que a pessoa que acolhe a triagem tem uma oportunidade de usar o seu cérebro para melhorar o resultado. O sofrimento da pessoa que não recebe o escasso recurso não é menor porque, pessoalmente, ainda não o testemunhamos. Quando Fink viu o sofrimento de Nathalie, isso só a deveria ter informado quanto à gravidade da situação – tanto para Nathalie como para aqueles que receberam o oxigénio.

Compreendo que seja difícil, que instintivamente nos iremos preocupar sempre mais com as pessoas que vemos do que com as que não vemos.  Não há qualquer vergonha nos sentimentos profundos da Fink pela Nathalie. Estes são uma componente chave da compaixão. Mas deve haver grande vergonha em deixar sofrer e morrer mais pessoas do que o necessário porque não se pode olhar para além dos nossos próprios sentimentos. Este é o tipo de empatia restritiva a que Paul Bloom se opõe.

milhões de pessoas em todo o mundo que morrem de causas totalmente evitáveis. Porque deveria fazer qualquer diferença que estas pessoas não estejam à nossa frente? Sabemos que elas estão lá. Elas conhecem o sofrimento que sentem. A pobreza é o principal culpado, tal como as doenças tropicais negligenciadas que poderiam ser curadas por cêntimos por pessoa por ano. Dinheiro de que nem sequer sentiríamos falta poderia estar a salvar vidas neste momento, se o aplicássemos nesse objectivo em vez de, digamos, fazermos melhoramentos em casa ou coleccionarmos figuras de acção. Todas as decisões que tomamos têm a ver com a vida de uma miríade de outras pessoas que talvez pudéssemos ajudar.

Estamos sempre em triagem. Espero fervorosamente que um dia sejamos capazes de salvar toda a gente. Entretanto, é irresponsável fingir que não estamos a tomar decisões de vida ou morte com a alocação dos nossos recursos. Fingir que não há escolha só piora as nossas decisões.


Publicado originalmente por Holly Elmore no EA Forum, a 26 de Agosto de 2016.

Tradução de José Oliveira.


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