Uma grande vitória no Supremo Tribunal para os animais da pecuária

Lewis Bollard (Newsletter da Open Philanthropy sobre o bem-estar animal na pecuária)

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Uma vitória para os animais? (Arte digital: José Oliveira | Fotografias: Sasun Bughdaryan e Lucia Macedo)

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Ganhámos. Ontem de manhã, o Supremo Tribunal dos EUA decidiu que a Proposta 12 da Califórnia — a lei do bem-estar dos animais da pecuária mais forte do país — é constitucional. Com 5 votos a favor e 4 contra, os juízes votaram para rejeitar uma contestação à lei levada a cabo por produtores de carne de porco, que proíbe a venda na Califórnia de carne de porco, vitela e ovos provenientes de animais em celas e gaiolas e das suas crias. 

A contestação dos produtores de carne de porco incidia apenas sobre a parte da lei relativa à carne de porco. Mas uma decisão negativa poderia ter tido implicações muito mais vastas. Poderia ter invalidado toda a Proposta 12, que beneficia directamente cerca de 40 milhões de galinhas e 700 000 porcas que produzem ovos e carne de porco para os californianos. E poderia ter criado um precedente que anulasse cerca de 20 outras leis estaduais e locais que proíbem a venda de produtos obtidos de forma cruel, desde ovos de galinhas criadas em gaiolas até peles e foie gras

Portanto, isto é muito importante. Com esta decisão é a primeira vez, desde sempre, que o Supremo Tribunal defende uma lei de protecção dos animais. E envia uma mensagem inequívoca às empresas americanas de que as gaiolas e as celas não têm futuro a longo prazo.

É também uma surpresa. Desde 2007, o Supremo Tribunal anulou completamente 80% dos casos que ouviu do Tribunal de Recursos da Nona Circunscrição, que é liberal e que tinha anteriormente defendido a lei da Califórnia. Os produtores de carne de porco tinham conseguido o apoio de 26 estados americanos, dos maiores grupos industriais do país e até da Administração Biden. Durante as audiências, os juízes bombardearam os advogados da Califórnia com argumentos hipotéticos sobre o caos que a aprovação da Proposta 12 poderia desencadear.

A decisão final foi renhida, contando com aliados invulgares. Os três membros mais conservadores do Tribunal (os juízes Barrett, Gorsuch e Thomas) juntaram-se a dois dos mais liberais (os juízes Kagan e Sotomayor) para defender a Proposta 12. Os outros três conservadores do Tribunal juntaram-se ao juiz Jackson, nomeado por Biden, para discordar da decisão. 

E então, o que aconteceu? Porque é que o Tribunal decidiu a favor dos animais e o que é que a decisão significa para o futuro do bem-estar dos animais da pecuária? (Se este caso é novo para si, talvez queira ler primeiro a introdução que escrevi sobre isso no ano passado).

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Direitos dos Estados, e não direitos dos animais

A primeira coisa a saber sobre a decisão final é que, em grande medida, não está relacionada com os animais. Para citar a opinião maioritária do juiz Gorsuch: “Embora a Constituição trate de muitas questões importantes, o tipo de costeletas de porco que os comerciantes da Califórnia possam vender não faz parte dessa lista”. 

O Tribunal não estava a decidir sobre os méritos das gaiolas e das celas, nem sequer da lei da Califórnia. Em vez disso, estava a decidir sobre uma questão jurídica específica: se a Proposta 12 “sobrecarrega inadmissivelmente o comércio interestatal” e se é, portanto, inconstitucional ao abrigo da Cláusula de Comércio negativa, uma doutrina constitucional.

Os produtores de carne de porco apresentaram dois argumentos. Em primeiro lugar, argumentaram que a Proposta 12 regulamentava “extraterritorialmente” fora da Califórnia e, por conseguinte, era “quase por si só” inconstitucional. Se a Califórnia pode regulamentar as condições da pecuária no Iowa, perguntaram, o que é que impede o Iowa de regulamentar as condições dos locais de trabalho na Califórnia?  

Todos os nove juízes rejeitaram esse argumento, considerando que a Cláusula de Comércio negativo impede sobretudo os estados de aprovarem leis proteccionistas, que discriminam os produtores fora do estado. Isso não se aplica à Proposta 12, que trata igualmente os produtores de carne de porco que sejam provenientes, ou não, desse estado.

Em segundo lugar, os produtores de carne de porco argumentaram que os encargos que a Proposta 12 impunha ao “comércio interestatal” (leia-se: os lucros dos produtores de carne de porco) ultrapassavam em muito os seus benefícios para os californianos (leia-se: ignorar os benefícios para os porcos). Afirmaram que a eliminação das celas de gestação lhes custaria 3500 dólares por cada porca e aumentaria 13 dólares no preço de cada porco enviado para o mercado.

O Presidente do Supremo Tribunal e três colegas concordaram que o tribunal de primeira instância deveria ter ponderado os encargos da Proposta 12 em relação aos seus benefícios. Teriam anulado a decisão do tribunal de recursos e reenviado para o tribunal de primeira instância para o fazer, dando aos produtores de carne de porco uma oportunidade de anularem a Proposta 12. O juiz Kavanaugh foi mais longe, observando que as contestações legais “face às leis como a Proposta 12 da Califórnia (ou mesmo à própria Proposta 12) poderiam ser bem-sucedidas no futuro…”.

Mas os porcos acabaram por ser salvos pelos outros juízes. O juiz Gorusch e três colegas rejeitaram a premissa de que o comércio interestadual foi afectado pela Proposta 12. Em vez disso, “os factos invocados nesta queixa limitam-se a alegar prejuízos quanto aos «métodos de operação» preferidos de alguns produtores”. Por outras palavras, a Proposta 12 não impede o comércio interestatal de carne de porco; limita-se a interromper esse comércio para os produtores que continuam a utilizar celas.

A juíza Barrett discordou. No entanto, forneceu o quinto voto decisivo a favor da Proposta 12 por uma razão diferente (Ficou confuso?). Defendeu que os tribunais não são capazes de calcular os encargos económicos face aos benefícios não económicos. Nas palavras da juíza, “o interesse da Califórnia em eliminar produtos alegadamente desumanos dos seus mercados não pode ser calculado numa escala face a dólares e cêntimos…”. 

E foi assim que chegámos lá. Para que conste, eu estava errado. Pensei que íamos perder com 6 votos contra e 3 a favor, com Barrett e Kagan contra nós. 

Um precedente muito para além dos porcos

O efeito imediato da decisão é o fim do litígio, que durou anos, dos produtores de carne de porco que procuravam invalidar a Proposta 12. As partes da lei relativas à carne de porco, que tinham sido adiadas enquanto se aguardava a decisão, deverão entrar agora em vigor (As partes da lei relativas aos ovos e à carne de vitela já estão em vigor).

Esta medida deverá pôr termo aos entraves dos produtores de carne de porco, que têm resistido ferozmente aos esforços para eliminar as celas de gestação. Apesar de os principais produtores de carne de porco europeus e brasileiros terem eliminado as celas de gestação, a indústria americana continua a confinar permanentemente 72% dos seus cerca de seis milhões de porcas gestantes. E diz que confina “quase universalmente” os outros 28% durante pelo menos um terço da sua gravidez e da subsequente lactação — colectivamente, cerca de metade das suas vidas. 

A Smithfield Foods, a maior produtora de carne de porco do país, citou o caso do Supremo Tribunal no seu recente relatório de sustentabilidade como motivo de esperança de não ter de cumprir a Proposta 12, a que chamou “iniciativas de votação introduzidas por activistas dos direitos dos animais como parte dos esforços contínuos para prejudicar a pecuária e o consumo de carne” (Diz agora que está “empenhada em servir os nossos clientes na Califórnia…”).

A decisão deverá também acelerar o abandono das gaiolas em bateria por parte da indústria dos ovos. Actualmente, 39% dos cerca de 310 milhões de galinhas poedeiras dos EUA estão livres de gaiolas, graças à aplicação das leis da Califórnia e do Massachusetts e aos compromissos assumidos por empresas como a Costco e a McDonald’s. Agora, mais cinco leis estaduais que proíbem a venda de ovos de galinhas criadas em gaiolas — no Arizona, Colorado, Michigan, Oregon e Washington — entrarão em vigor nos próximos dois anos.

Em termos mais gerais, a decisão é uma vitória para o princípio de que os Estados podem proibir a importação e a venda de bens produzidos de forma cruel. Isto deverá reforçar a necessidade de mais proibições estatais de outros bens produzidos de forma cruel, como as peles e os frangos criados em fracas condições de bem-estar. Pode também encorajar mais nações a aplicarem as suas próprias leis de bem-estar animal às importações, como a União Europeia está actualmente a considerar fazer.

Finalmente, e acima de tudo, esta é uma vitória para os milhares de defensores dos animais e de doadores que disponibilizaram o seu tempo e o seu dinheiro para que a Proposta 12 fosse aprovada. O trabalho de defender os milhares de milhões [Br.: bilhões] de animais da pecuária industrial pode ser cansativo e frustrante. A decisão final do Supremo Tribunal serve para nos lembrar que esse trabalho também pode beneficiar a vida de inúmeros animais.


Publicado originalmente por Lewis Bollard na Newsletter da Open Philanthropy sobre o bem-estar animal na pecuária, a 12 de Maio de 2023.

Tradução de Rosa Costa e José Oliveira.

 


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