A Criança se Afogando e o Círculo em Expansão

Por Peter Singer 

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É nosso dever ajudar? (Arte digital: José Oliveira | Fotografias: Pixabay)

Para desafiar meus alunos a pensar sobre a ética daquilo que devemos às pessoas com necessidades, peço-lhes que imaginem que o seu caminho para a universidade os leve a passar por um lago raso. Certa manhã, digo-lhes, vocês notam que uma criança caiu lá dentro e parece estar se afogando. Entrar na água e puxar a criança para fora seria fácil, mas isso significa que você ficaria com a roupa molhada e enlameada, e no tempo de voltar a casa e se trocar, já teria perdido a primeira aula.

Então pergunto aos alunos: vocês teriam alguma obrigação de salvar essa criança? Unanimemente, os alunos dizem que têm. A importância de salvar uma criança, até ver, supera o custo de se ficar com as roupas enlameadas e de se perder uma aula, para que eles se recusem a considerar isso como qualquer tipo de desculpa para não salvar a criança. Faz alguma diferença, pergunto, se há outras pessoas passando pelo lago que também poderiam resgatar a criança, mas não o fazem?

Não, os alunos respondem, o fato de os outros não estarem fazendo o que deveriam não é razão para eu deixar de fazer o que deveria.

Assim que ficamos esclarecidos sobre quais são as nossas obrigações para salvar uma criança a afogar-se na nossa frente, pergunto: faria alguma diferença se a criança estivesse muito longe, talvez em outro país, mas correndo um risco de morte semelhante, e se, do mesmo jeito, estivesse dentro de suas possibilidades salvá-la, sem grandes custos — e absolutamente nenhum risco — para si? Praticamente todos concordam que a distância e a nacionalidade não fazem qualquer diferença moral nessa situação. Então ressalto que todos nós estamos na mesma situação da pessoa que passa pelo lago raso: todos nós podemos salvar vidas de pessoas, crianças e adultos, que, caso contrário, morreriam, e podemos fazê-lo a um custo muito pequeno para nós: o custo de um CD novo, ou de uma camisa, ou de uma saída à noite a um restaurante ou a um concerto, pode significar a diferença entre a vida e a morte para mais de uma pessoa algures no mundo — e agências humanitárias no exterior como a Oxfam resolvem o problema de agir à distância.

Nesse momento, os alunos levantam várias dificuldades práticas. Podemos ter certeza de que a nossa doação vai realmente chegar às pessoas que precisam dela? A maior parte da nossa doação não é engolida pelos custos administrativos, pelo desperdício, ou simplesmente pela corrupção? O problema real não será o crescimento da população mundial, e fará algum sentido salvar vidas até que esse problema seja resolvido? Todas estas perguntas podem ser respondidas: mas também mostro que, mesmo se uma proporção considerável de nossas doações fosse desperdiçada, o nosso custo para fazer a doação é tão pequeno, em comparação com os benefícios proporcionados por ela que, ainda que só uma parte dela chegue até quem precisa de nossa ajuda, estaríamos salvando vidas a um custo pequeno para nós próprios — mesmo se as organizações de caridade fossem muito menos eficientes do que realmente são.

Fico sempre impressionado por tão poucos alunos desafiarem a ética subjacente à ideia de que temos o dever de salvar as vidas de estranhos quando podemos fazê-lo a um custo relativamente pequeno para nós mesmos. No final do século XIX, WH Lecky descreveu os interesses humanos como um círculo em expansão, que começa com o indivíduo, depois abrange a família e “logo o círculo… inclui primeiro uma classe, depois uma nação, e depois uma coligação de nações, em seguida, toda a humanidade e, finalmente, a sua influência é sentida nas relações do homem [sic] com o mundo animal”. Com base nisso, a esmagadora maioria dos meus alunos parece já estar — pelo menos — na penúltima etapa do círculo em expansão de Lecky. Há, é claro, para muitos estudantes e por várias razões, uma lacuna entre admitir o que devemos fazer e fazê-lo; mas voltarei a essa questão em breve.

O nosso século é o primeiro em que foi possível falar de responsabilidade global e de uma comunidade global. Na maior parte da história humana nós podíamos apenas afetar as pessoas em nosso vilarejo, ou talvez em uma grande cidade, mas mesmo um poderoso rei não poderia conquistar muito além das fronteiras de seu reino. Quando Adriano governou o Império Romano, seu reino cobria a maior parte do mundo “conhecido”, mas hoje, quando eu entro a bordo de um jato em Londres, ao sair daquele que costumava ser um dos postos avançados do Império Romano, atravesso o seu limite oposto mesmo antes de estar a meio caminho de Cingapura, quanto mais ao chegar em minha casa na Austrália.

Além disso, não importa qual a extensão do império, o tempo necessário para comunicações e transportes significava que simplesmente não havia meio das pessoas fazerem qualquer diferença quanto às vítimas das inundações, guerras ou massacres que aconteciam do outro lado do globo. Quando alguém ouvisse falar dos eventos e reagisse, as vítimas já estariam mortas ou teriam sobrevivido sem sua ajuda. “A caridade começa em casa” fazia sentido, porque era só “em casa” — ou pelo menos em sua própria cidade — que você podia ter confiança de que a sua caridade faria alguma diferença.

Comunicações instantâneas e transporte a jato mudaram tudo isso. Uma audiência televisiva de dois bilhões de pessoas [Pt. dois mil milhões de pessoas] pode agora ver crianças famintas pedirem comida em uma área atingida pela fome, ou elas podem ver um fluxo de refugiados cruzando fronteiras em busca de um lugar seguro longe de quem receiam poder matá-los. A maior parte dessa grande audiência também tem os meios para ajudar as pessoas que estão vendo em seus televisores. Cada um de nós pode tirar do bolso um cartão de crédito e fazer uma doação por telefone para uma organização de caridade que pode, em poucos dias, transportar pessoas que podem começar a distribuir alimentos e suprimentos médicos. Coletivamente, também está dentro da capacidade da Organização das Nações Unidas — com o apoio de grandes potências — colocar tropas no terreno para proteger aqueles que estão em perigo de se tornarem vítimas de genocídio.

A nossa capacidade de afetar o que está acontecendo, em qualquer lugar do mundo, é uma das maneiras de estarmos vivendo em uma era de responsabilidade global.  Mas há também uma outra maneira que oferece um contraste ainda mais dramático com o passado.

Até há pouco tempo, a atmosfera e os oceanos pareciam ser elementos da natureza totalmente imunes às atividades insignificantes dos seres humanos. Agora sabemos que o nosso uso de clorofluorocarbonos danificou a camada de ozônio; as nossas emissões de dióxido de carbono estão mudando o clima de todo o planeta de maneiras imprevisíveis e elevando o nível do mar; frotas de pesca estão vasculhando os oceanos, esgotando populações de peixes que antes pareciam ilimitadas a um nível a partir do qual poderão nunca se recuperar. Deste modo, as ações dos consumidores em Los Angeles podem causar câncer de pele entre os Australianos, inundar as terras de camponeses no Bangladesh e forçar a trabalhar nas fábricas de Bangkok aldeões Tailandeses que antes podiam ganhar a vida a pescar.

Nestas circunstâncias a necessidade de uma ética global é inevitável. Será, apesar disso, uma esperança vã? Eis algumas razões pelas quais pode não ser esse o caso.

Vivemos em uma época em que muitas pessoas sentem as suas vidas como sendo vazias e sem realização pessoal. O declínio da religião e o colapso do comunismo nos deixaram com apenas uma ideologia de mercado livre cuja única mensagem é: consuma e trabalhe duro para que possa ganhar dinheiro e consumir mais. No entanto, mesmo aqueles que são razoavelmente bons nesta corrida por bens materiais não lhes parece que estejam satisfeitos com o seu modo de vida. Hoje temos boas evidências científicas para aquilo que os filósofos disseram ao longo dos tempos: uma vez que tenhamos o suficiente para satisfazer as nossas necessidades básicas, obter mais riqueza não nos traz mais felicidade.

Considere a vida de Ivan Boesky, o negociante multimilionário de Wall Street que em 1986 se declarou culpado de Inside trading*. Por que Boesky se envolveu em atividades criminosas quando ele já tinha mais dinheiro do que poderia alguma vez gastar? Seis anos após explodir o escândalo do abuso de informação privilegiada, Seema, esposa separada de Boesky, falou sobre as motivações de seu marido em uma entrevista à Barbara Walters, para o programa 20/20 da rede de televisão americana ABC. Walters perguntou se Boesky era um homem obcecado pelo luxo. Seema Boesky pensava que não, salientou que ele trabalhava todo o dia, sete dias por semana, e nunca teve um dia de folga para desfrutar seu dinheiro. Ela, então, lembrou que, quando em 1982 a revista Forbes listou pela primeira vez Boesky entre as pessoas mais ricas dos EUA, ele estava incomodado. Ela assumiu que ele não estava gostando da publicidade e fez um comentário sugerindo isso. Boesky respondeu: “Não é isso que está me incomodando. Não somos ninguém. Não estamos em lugar nenhum. Estamos no final da lista e eu prometo que não vou nos envergonhar assim novamente. Nós não vamos ficar mais no final dessa lista.”

Temos que nos livrar dessa concepção absurda de sucesso. Ela não só falha em trazer felicidade, mesmo para aqueles que, como Boesky, são extraordinariamente bons na luta competitiva; como também define um padrão social que é uma receita para a injustiça global e para o desastre ambiental. Não podemos continuar a ver a nossa meta como a aquisição de mais e mais riqueza, ou como o consumo de mais e mais bens, e deixando para trás uma montanha cada vez maior de lixo.

Temos tendência a ver a ética como contrária ao interesse próprio; assumimos que aqueles que fazem fortunas através do abuso de informação privilegiada estão seguindo com sucesso seu próprio interesse, — desde que não sejam apanhados — e ignorando a ética. Nós acreditamos que é do nosso interesse ter uma posição mais alta e mais bem paga em outra empresa, mesmo que isso signifique ajudar a fabricar ou promover um produto que não faça qualquer bem, ou que seja prejudicial ao meio ambiente. Por outro lado, aqueles que deixam passar oportunidades de ascensão em sua carreira por causa de escrúpulos éticos sobre a natureza do trabalho, ou que doam a sua riqueza para boas causas, são vistos como quem sacrifica seus interesses próprios a fim de obedecer aos ditames da ética.

Muitos dirão que é ingênuo acreditar que as pessoas possam mudar de uma vida baseada no consumo, ou na subida ao topo da carreira, para uma vida que fosse mais ética em sua direção fundamental. Mas essa mudança responderia a uma necessidade concreta. Hoje, a afirmação de que a vida não tem sentido não vem de filósofos existencialistas que a tratam como uma descoberta chocante: ela vem de adolescentes entediados para quem isso é óbvio. Talvez o lugar central dado ao interesse próprio, e a maneira pela qual concebemos o nosso interesse próprio, sejam os culpados neste caso. A busca pelo interesse próprio, como geralmente concebido, é uma vida sem qualquer significado além do nosso próprio prazer ou satisfação individual. Tal vida é, muitas vezes, uma empreitada auto-destrutiva. Os antigos já conheciam o “paradoxo do hedonismo”, segundo o qual quanto mais explicitamente perseguimos o prazer, mais inatingível será a sua satisfação. Não há qualquer razão para acreditar que a natureza do ser humano tenha mudado tão drasticamente a ponto de tornar essa antiga sabedoria inaplicável.

Aqui a ética oferece uma solução. Uma vida ética é aquela em que nos identificamos com outras metas maiores, dando assim sentido à nossa vida. A visão de que há uma harmonia entre a ética e o interesse próprio esclarecido é antiga, mas agora é muitas vezes desprezada. O cinismo está mais na moda que o idealismo. Mas essas esperanças não são infundadas, e há elementos substanciais de verdade na antiga visão de que uma vida eticamente refletida é também uma boa vida para a pessoa que a conduz. Nunca houve tanta urgência em que as razões para aceitar este ponto de vista fossem amplamente compreendidas.

Em uma sociedade em que a busca direta pelo interesse próprio material é a norma, a mudança para uma postura ética é mais radical do que muitas pessoas imaginam. Em comparação com as necessidades das pessoas com escassez de comida em Ruanda, o desejo de provar os vinhos dos melhores vinhedos da Austrália é uma insignificância. Uma abordagem ética à vida não proíbe divertimento ou o desfrute de comida e vinho; mas muda a nosso senso de prioridades. O esforço e os gastos usados na moda, a busca incessante por prazeres gastronômicos mais refinados, a despesa adicional que marca o mercado de carros de luxo — tudo isso torna-se desproporcional às pessoas que conseguem mudar de perspectiva o suficiente para colocar-se na posição das pessoas afetadas por suas ações. Se o círculo de ética realmente se expandir, e uma consciência ética mais elevada se espalhar, isso vai mudar fundamentalmente a sociedade em que vivemos.

* Utilização abusiva de informação privilegiada (N. do T.).


Postado originalmente por Peter Singer em New Internationalist, Abril, 1997

Tradução de Thiago Tamosauskas. Revisão de Celso Vieira e José Oliveira.

Este texto está presente no Manual do Altruísmo Eficaz

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