500 milhões, mas nem mais um

Por Jai Dhyani (EA Forum – 2014)

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Qual é a cura? (Arte digital: José Oliveira | Fotografias: Pixabay)

Nunca saberemos os seus nomes.

A primeira vítima não poderia ter sido registada, pois não havia linguagem escrita para registá-la. Seriam a filha ou o filho de alguém e amigos de alguém, e seriam amados por aqueles que lhes estavam próximos. E estariam em sofrimento, cobertos de erupções cutâneas, confusos, com medo, sem saber por que lhes estava a acontecer aquilo, ou o que poderiam fazer sobre isso — vítimas de um deus louco e desumano. Não havia nada que se pudesse fazer — a humanidade não era suficientemente forte, não estava suficientemente ciente, não tinha conhecimento suficiente para lutar contra um monstro que não se podia ver.

Foi no Egipto Antigo, onde atacou tanto os escravos como os faraós. Em Roma, dizimou exércitos sem qualquer esforço. Matou na Síria. Matou em Moscovo [Br. Moscou]. Na Índia, cinco milhões de mortos. Matou mil europeus todos os dias no século XVIII. Matou mais de cinquenta milhões de nativos norte-americanos. Da Guerra do Peloponeso à Guerra Civil, matou mais soldados e civis do que qualquer arma, qualquer soldado, qualquer exército. (Não que isso tenha impedido as almas mais tolas e vazias de tentar aproveitar-se do demónio como uma arma contra os seus inimigos.) 

As culturas cresceram e vacilaram, e este permaneceu. Impérios surgiram e caíram, e este prosperou. As ideologias expandiram e mirraram, mas este não se importava. Matar. Mutilar. Propagar. Um deus antigo e louco, escondido da vista, que não podia ser combatido, que não podia ser confrontado, que nem sequer podia ser compreendido. Não era o único do seu tipo, mas era o mais devastador.

Por muito tempo, não houve esperança — apenas a resistência amarga e fútil dos sobreviventes.

Na China, no século X, a humanidade começou a dar-lhe luta.

Notou-se que os sobreviventes da maldição do deus louco nunca mais seriam tocados: estes haviam tomado para si mesmos uma parte desse poder e estavam protegidos dele. Não apenas isso, mas esse poder poderia ser partilhado, consumindo restos das feridas. Havia um preço, pois não se podia tomar o poder do deus sem primeiro o derrotar — mas uma batalha menor, nos termos da humanidade. 

No século XVI, a técnica espalhou-se pela Índia, depois pela Ásia, pelo Império Otomano e, no século XVIII, pela Europa. Em 1796, uma técnica mais poderosa foi descoberta por Edward Jenner.

Uma ideia começou a impor-se: talvez o antigo deus pudesse ser morto.

Um sussurro tornou-se uma voz; uma voz tornou-se um apelo; um apelo tornou-se um grito de guerra, varrendo vilas, cidades, nações. A humanidade começou a cooperar, espalhando o poder protector por todo o globo, enviando mestres da arte para proteger populações inteiras. Pessoas que eram inimigas de longa data juntaram-se numa causa comum para esta batalha. Os governos ordenaram que todos os cidadãos se protegessem, pois dar ao antigo inimigo uma única vida, colocaria milhões em perigo.

E, pouco a pouco, a humanidade repeliu o seu inimigo. Menos amigos choraram; menos vizinhos ficaram aleijados; menos pais tiveram que enterrar os seus filhos.

No alvorecer do século XX, pela primeira vez, a humanidade baniu o inimigo de regiões inteiras do mundo. A humanidade vacilou muitas vezes nos seus esforços, mas houve indivíduos que nunca desistiram, que lutaram pelo sonho de um mundo onde nenhuma criança ou ente querido jamais teria medo do demónio novamente. Viktor Zhdanov, que apelou à humanidade para se unir num esforço final contra o demónio; o grande estratega Karel Raška, que concebeu uma estratégia para aniquilar o inimigo; Donald Henderson, que liderou os esforços naqueles dias finais.

O inimigo ficou cada vez mais fraco. Milhões tornaram-se milhares, milhares tornaram-se dezenas. E, de súbito, quando o inimigo finalmente atacou, dezenas de seres humanos surgiram para o desafiar, protegendo todos aqueles que este pudesse colocar em perigo.

O último ataque do inimigo na natureza foi contra Ali Maow Maalin, em 1977. Durante meses depois, seres humanos dedicados varreram a área circundante, procurando qualquer esconderijo desesperado onde o inimigo ainda pudesse permanecer.

Não encontraram nenhum.

Há trinta e cinco anos, a 9 de Dezembro de 1979, a humanidade declarou vitória.

Este mal único, o horror de tempos imemoriais, o monstro que levou 500 milhões de pessoas deste mundo, fora destruído.

Você é membro da espécie que fez isso. Nunca se esqueça do que somos capazes quando nos unimos e declaramos guerra face àquilo que está mal neste mundo.

Feliz Dia da Erradicação da Varíola.


Publicado por Jai Dhyani no EA Forum, a 9 de Dezembro de 2014.

Tradução de José Oliveira.

Animação em inglês


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