Por Lewis Bollard (Open Philanthropy)
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Se os amamos, porque os torturamos? (Arte digital: José Oliveira | Fotografia: Jason Leung)
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As pessoas adoram animais. Os vídeos de gatos fofinhos dominam o TikTok e o YouTube, o Puppy Bowl atinge 420 milhões de visualizações nas redes sociais e os filmes da Disney veneram desenhos animados de criaturas animais. Dois terços dos americanos têm pelo menos um animal de estimação e 88% destes consideram os seus animais de estimação como sendo membros da família, com os quais gastam 137 mil milhões [Br.: 137 bilhões] de dólares por ano — mais do que a produção económica da maioria das nações.
As pessoas também detestam que os animais sejam maltratados. Os filmes de Hollywood proclamam orgulhosamente que “nenhum animal foi ferido”, enquanto as plataformas das redes sociais afirmam todas que proíbem conteúdos que envolvam crueldade contra os animais. Pergunte ao ChatGPT se os maus tratos a animais são errados e este abandona o seu padrão de neutralidade moral a favor de um empático “sim”.
Um inquérito da Faunalytics, de 2019, revelou que a maioria dos americanos concorda que “as pessoas têm a obrigação de evitar fazer mal a todos os animais”, enquanto que um inquérito da Gallup de 2015 revelou que um terço dos americanos acredita que os animais merecem “exactamente os mesmos direitos, de não serem prejudicados e explorados, que as pessoas”.
Mesmo os piores políticos e empresas não se atrevem a defender publicamente a crueldade contra os animais. Vladimir Putin é um auto-proclamado amante dos animais que arranjou tempo entre as invasões da Ucrânia para assinar um projecto de lei sobre a crueldade contra os animais. A Tyson Foods afirma que encara o tratamento dos animais como “uma importante obrigação moral e ética” — mesmo quando os seus fornecedores confinam milhares de milhões [Br.: bilhões] destes em condições terríveis.

Vladimir Putin: assassino em massa e amante de cachorrinhos. Fonte: Business Insider, 21 Fotografias de Vladimir Putin Que Vão Derreter o Seu Coração.
As nossas leis reflectem isso mesmo. A crueldade contra os animais é um crime na maioria dos países e um delito em todos os estados dos EUA. Em muitos casos, maltratar um animal é punível com uma pena de um a dez anos de prisão — uma pena semelhante à de agredir um ser humano. Como salienta o jurista Cass Sunstein, estas leis reconhecem implicitamente que os animais têm “direitos” — protecção legal contra maus-tratos — mesmo que esses direitos raramente sejam aplicados.
Estas leis normalmente excluem os animais da pecuária. Mas a preocupação popular não: num inquérito da Faunalytics de 2018, 62 a 79% dos americanos, brasileiros, indianos e russos concordaram “que os animais utilizados para alimentação têm aproximadamente a mesma capacidade de sentir dor e desconforto que os seres humanos”. (Menos chineses concordaram, mas num inquérito de 2021, mais de 80% disseram que era de alguma ou de muita importância que os mamíferos e as aves fossem bem tratados). Num inquérito recente levado a cabo por Michelle Sinclair e os seus colaboradores, mais de 75% dos inquiridos em 14 nações diferentes concordaram que o bem-estar dos animais da pecuária “é importante para mim” — uma percentagem semelhante à dos que disseram o mesmo para os animais de estimação.
E, no entanto, também temos a pecuária industrial, que confina mais de uma dúzia de animais por cada ser humano vivo na Terra, em condições tão miseráveis que têm de estar excluídas das leis sobre crueldade contra os animais. O que é que se passa? Como explicar o fosso entre a nossa crença de que adoramos os animais e a realidade de que os torturamos numa escala sem precedentes?

A maioria das pessoas concorda que é importante para si que haja no seu país condições de bem-estar dos animais da pecuária e de estimação. N= 4 291 inquiridos, com 250 a 500 por país. Note-se que a amostra não foi demograficamente equilibrada, aleatória ou padronizada (com uma mistura de entrevistas online e presenciais). Fonte: Michelle Sinclair et al, International perceptions of animals and the importance of their welfare [Percepções internacionais sobre os animais e a importância do seu bem-estar], em Frontiers in Animal Science (Agosto de 2022).
Alguns animais são mais iguais do que outros
As teorias mais populares atribuem a culpa da nossa dissonância cognitiva em relação aos animais à ciência, à lei, à cultura popular, ao preconceito antropocêntrico e à linguística. A ciência reduz a complexidade cognitiva dos animais a testes arbitrários, como a capacidade de se reconhecerem a si próprios num espelho. (Os cães não conseguem, mas conseguem reconhecer o seu próprio cheiro, o que nós não conseguimos). As leis reduzem os seres vivos, sensíveis e com sentimentos, a mera propriedade. A cultura popular valoriza os cães e os gatos, mas raramente as galinhas ou os peixes. O preconceito antropocêntrico leva-nos a favorecer animais que se parecem com bebés humanos, com rostos arredondados e olhos grandes. Até a nossa linguagem, cheia de eufemismos como “processamento de carne” e “declínio populacional”, obscurece a realidade do que estamos a fazer aos animais.
Tudo isto tem um fundo de verdade. Mas não tenho a certeza se explica porque é que maltratamos os animais.
Consideremos os ratos e os coelhos. A ciência reconhece a sua complexidade e é por isso que ambos são organismos modelo para a neuro-ciência humana, incluindo para doenças cognitivas complexas como a depressão e a ansiedade. As leis de crueldade contra os animais, que normalmente abrangem pelo menos os mamíferos, protegem-nos nominalmente — mesmo que as leis raramente sejam aplicadas. A cultura popular aprecia-os: há poucos animais mais famosos do que o Mickey Mouse e o Bugs Bunny [Br.: Pernalonga]. O preconceito antropocêntrico deveria favorecê-los: os ratos e os coelhos bebés são adoráveis (ver abaixo). E a nossa linguagem dificilmente esconde a utilização que lhes damos: “ratoeiras” e “carne de coelho” não constituem eufemismos. No entanto, matámo-los com veneno e armadilhas, fazemos experiências e criamo-los industrialmente às centenas de milhões.

Os coelhos bebés são adoráveis. Este tem umas orelhas descaídas invulgarmente descoordenadas. Fonte: Sandy Millar/Unsplash
Outra teoria popular atribui a culpa aos limites do nosso círculo moral. Adoramos animais que se encontram dentro desse círculo — animais de estimação e animais selvagens carismáticos — e desprezamos os que se encontram fora dele — pestes e comida. De facto, um estudo recente de Bastian Jaeger e Matti Wilks revelou que os americanos, os australianos e os britânicos consideram que os cães e os elefantes merecem muito mais consideração moral do que os peixes e os ratos (ver abaixo). Mas também classificaram as vacas como sendo tão importantes como os membros do partido político oposto — nada mau para um bovino.
E as hierarquias morais são confusas. O estudo de Sinclair encontrou uma hierarquia muito mais esbatida quando perguntou a pessoas de 14 países sobre a importância relativa do bem-estar de diferentes espécies. As galinhas obtiveram uma pontuação tão elevada como os cães, enquanto que os peixes nadaram à frente das tartarugas. Os círculos morais também não são estáticos: dependendo da época e do lugar, os coelhos são animais de estimação, animais selvagens, pragas e alimento.

“Os participantes classificaram o grau em que se sentem obrigados a mostrar consideração moral pelo bem-estar e interesse de cada ser visado numa escala que variava de 1 (absolutamente nenhuma obrigação) a 9 (obrigação muito forte)”. Fonte: Bastian Jaeger e Matti Wilks, The relative importance of target and judge characteristics in shaping our moral circle [A importância relativa das características do ser visado e de quem o visa na formação do nosso círculo moral] (Setembro de 2022), pré-publicação.
Humano apático, animal escondido
Uma explicação mais simples é que as pessoas maltratam os animais quando é conveniente fazê-lo, normalmente porque isso envolve ganhar dinheiro. Ou, nas palavras da grande Ruth Harrison, uma esquecida fundadora do movimento moderno de defesa dos animais da pecuária: “se uma pessoa é má para um animal, isso é considerado uma crueldade, mas quando muitas pessoas são más para os animais, especialmente em nome do lucro, a crueldade é tolerada e, quando estão em jogo grandes quantias de dinheiro, isso será defendido até às últimas consequências por pessoas que de outro modo seriam consideradas inteligentes”.
No entanto, apenas uma pequena fracção de pessoas maltrata sistematicamente os animais. A pecuária industrial e os matadouros empregam muito menos de um por cento da população mundial — e os patrões que dão as ordens ainda são menos. Então, porque é que o resto de nós permite, e paga, para que estes maltratem os animais?
Culpo a ignorância e a apatia. A maioria das pessoas não faz ideia de como os animais da pecuária são tratados. As explorações da pecuária industrial não recebem visitantes; aquela que recebia, a Fair Oaks Farms (a “Disneylândia dos Lacticínios”), descobriu-se que estava a esconder várias coisas. Os inquéritos do Sentience Institute revelam que a maioria dos americanos concorda que “os alimentos de origem animal que compro (…) provêm geralmente de animais que são tratados com humanidade”.
Isto deve-se, em parte, à rotulagem enganosa — as principais marcas de frangos da pecuária industrial são rotuladas como “totalmente naturais” e “criadas com humanidade”. É provável que também se deva ao facto de não acreditarmos que os agricultores, pessoas terra-a-terra, venerados nos livros infantis e que merecem a confiança de 88% dos americanos, maltratem os animais.
Mas suspeito que a maioria de nós simplesmente não quer saber. Ao contrário de outras crises sociais, como as alterações climáticas ou a IA descontrolada, os maus tratos a animais da pecuária nunca nos irão afectar pessoalmente, a nós ou aos nossos filhos. Os seres humanos têm um historial milenar de ignorar ou menosprezar as crises morais que não os afectam pessoalmente; porque haveriam de parar agora?
Talvez não ajude o facto de as soluções propostas mais frequentemente — comer menos carne ou tornar-se vegan — exigirem muito de nós. Garrett Broad, que realizou grupos de discussão e inquéritos sobre as nossas atitudes em relação aos animais, conclui: “As pessoas decididamente não queriam deixar de cuidar dos seus animais de estimação e também não estavam prontas para deixar de comer carne”.

A maioria dos britânicos concorda que as práticas comuns da pecuária industrial são “inaceitáveis”. Fonte: Bryant Research com base num inquérito a uma amostra representativa de n=1000 adultos do Reino Unido em Julho de 2022.
Se eles soubessem…
O que pensar disto tudo? É estranho, até mesmo irritante, que a maioria dos seres humanos se considere amante dos animais e que permita que continuem a acontecer os maiores maus tratos a animais na história da humanidade sem qualquer controlo. Mas também me dá alguma esperança.
A maioria dos movimentos sociais tem de persuadir as pessoas para que concordem com eles. Nós não: a maioria das pessoas já se opõe aos maus tratos a animais da pecuária. Num inquérito realizado em 2022, a Bryant Research descobriu que apenas 2 a 13% dos britânicos consideravam “aceitáveis” as práticas comuns da pecuária industrial. No inquérito da Faunalytics, uma maioria de americanos, brasileiros, chineses, indianos e russos apoiou uma lei que exigisse que os animais da pecuária fossem tratados de forma mais humana.
A nossa tarefa é mobilizar esse apoio para uma mudança empresarial e legislativa. Isso não é fácil: a ignorância e a apatia são adversários poderosos — tal como é o lobby da pecuária. Mas o aparente poder desta indústria assenta numa base frágil. As suas práticas são tão impopulares que a sua única esperança é escondê-las atrás de leis da mordaça e de portas fechadas. Isso raramente funcionou para as indústrias no passado; basta perguntar às grandes empresas de tabaco.
Também cria uma oportunidade para os defensores dos animais. As investigações secretas e as campanhas face às corporações funcionam porque o desfasamento entre as condições das explorações da pecuária industrial e as percepções dos consumidores é muito grande. O simples acto de expor essas condições é suficiente para chocar os consumidores.
Por vezes, os defensores evitam falar sobre os animais da pecuária, preferindo falar de preocupações mais humanas, como a nossa saúde. Penso que isso pode ser um erro. O amor das pessoas pelos animais, e a aversão à crueldade, é o nosso maior trunfo. Devemos usá-lo.
Publicado originalmente por Lewis Bollard na Open Philanthropy Farm Animal Welfare Research Newsletter, a 18 de Julho de 2023
Tradução de Rosa Costa e José Oliveira.
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