Como é que podemos levar o mundo a falar sobre a pecuária industrial?

Por Lewis Bollard (Open Philanthropy farm animal welfare research newsletter)

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Pecuária industrial, conseguimos ignorar? (Arte digital: José Oliveira | Foto: Wikipédia)

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É fácil ignorar a pecuária industrial. A inflação desencadeia o debate público sobre a economia. As catástrofes naturais geram notícias sobre as alterações climáticas. Os avanços da inteligência artificial provocam discussões sobre os seus riscos. Mas os abusos cometidos na pecuária industrial são ignorados.

Uma análise realizada pela minha colega Emma Buckland revelou que, desde 2010, a cobertura noticiosa global em língua inglesa, impressa e online, sobre a pecuária industrial apenas cresceu a par de outras reportagens sobre a agricultura (ver gráfico abaixo). Em contrapartida, a cobertura das alterações climáticas cresceu duas a três vezes mais depressa. Na última semana, o Google News registou uma percentagem de artigos entre 0,02% e 0,4% sobre a pecuária industrial em comparação com os artigos sobre as alterações climáticas.

Em tempos, as investigações de infiltrados quebraram este silêncio mediático. Na década anterior a 2018, os principais meios de comunicação social dos EUA, como a CBS, a CNN e a NBC, cobriram regularmente as suas descobertas. Desde então, raramente o fazem. Antes de 2018, 27 investigações de infiltrados dos três principais grupos de investigação ultrapassaram as 500 mil visualizações no YouTube. Desde então, nenhuma delas ultrapassou.

Isto é importante porque a pecuária industrial vai crescendo na sombra. Muitas práticas do sector são publicamente indefensáveis, por isso o sector prefere não as discutir publicamente. E quando os meios de comunicação ignoram a pecuária industrial, os políticos e os responsáveis empresariais também o podem fazer.

Um estudo da Faunalytics de 2022 testou o impacto de várias estratégias de defesa dos animais em 2405 pessoas. As notícias e as publicações nas redes sociais foram as que mais reduziram o consumo de produtos de origem animal e melhoraram as atitudes em relação ao bem-estar dos animais da pecuária. (Embora o impacto de todas as estratégias tenha sido pequeno). Também não desencadearam uma reacção adversa, como aconteceu com as estratégias mais conflituosas, como os protestos disruptivos.

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O número de artigos na imprensa escrita e online sobre a pecuária industrial manteve-se constante em relação à cobertura noticiosa de um tema agrícola mais neutro, como é o caso das “culturas” (utilizado como ponto de comparação, uma vez que o número total de todos os artigos aumentou na última década). Os principais jornais” incluem a BBC, NewsWeek, The Economist, The New York Times, The Times e (duvidosamente) The Daily Mail. Fonte: Dados da Nexis sobre artigos noticiosos em língua inglesa a nível mundial que mencionam a pecuária e qualquer um dos seguintes termos: bem-estar animal, crueldade animal, abate, sofrimento ou pecuária industrial.

Porque é que a pecuária industrial é tão raramente discutida publicamente? Alguns culpam o facto de o sector controlar os meios de comunicação social. Mas o sector também luta para obter cobertura noticiosa. A principal iniciativa de comunicação da indústria de frangos dos EUA, o Chicken Check-In, parece que nunca conseguiu ter uma história num órgão de comunicação social convencional ou muitos “gostos” [Br. “curtidas”] nas suas publicações nas redes sociais. O problema não é a parcialidade dos meios de comunicação, mas a sua indiferença.

Essa indiferença tem provavelmente muitas causas. Os horrores da pecuária industrial não são novos, por isso não são “notícia”. O tema é demasiado sombrio para a maioria dos jornais, demasiado macabro para a maioria dos programas de televisão e demasiado mundano para a maioria dos guerreiros culturais online. O facto de os animais não poderem falar não ajuda, pois não podem queixar-se na Internet da sua desgraça.

O declínio da cobertura das investigações de infiltrados é mais misterioso. Pode ter a ver com as leis de mordaça, com o colapso do jornalismo de investigação ou com a obsessão dos meios de comunicação com a política dos EUA. Mas também pode ser graças à gosma rosa. As reportagens da ABC News sobre essa gosma derivada da carne levaram-na a um processo judicial, que conduziu a um acordo de difamação recorde de 177 milhões de dólares em 2017. Pouco depois, a cobertura mediática das investigações sobre a pecuária industrial começou a diminuir.

A história nas redes sociais é ainda menos clara. É provável que os algoritmos tenham mudado, mas não sabemos como nem porquê. Podemos estar a ser vítimas da repressão pós-eleitoral de 2016 dos gigantes das redes sociais contra vídeos angustiantes. Ou os algoritmos podem simplesmente ter controlado o que as pessoas realmente querem ver — e a resposta é gatinhos num labirinto, e não galinhas torturadas.

O que é que podemos fazer em relação a isso? Não sou especialista em relações públicas, por isso perguntei a alguns responsáveis do movimento que o são, e também a alguns amigos dos meios de comunicação. Tinham muitas ideias — demasiadas para as enumerar aqui. Por isso, concentro-me em alguns pontos gerais comuns em três áreas: os meios de comunicação, os influenciadores e a narrativa. (Aviso: esta é uma lista de ideias interessantes, não uma lista de coisas que a Open Philanthropy pretende financiar. A sério, por favor, nada de enviar propostas).

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As pesquisas globais na Internet sobre o tema “criação intensiva de animais” (que inclui termos de pesquisa como “pecuária industrial”) mantiveram-se constantes em relação a outras pesquisas nas últimas duas décadas. Fonte: Google Trends.

Motivar os meios de comunicação 

Apesar da transformação do panorama dos meios de comunicação social, a maioria dos americanos ainda obtém as suas notícias através dos noticiários da televisão e dos sites de notícias. (A pesquisa na Internet e as redes sociais vêm a seguir, mas a rádio e os jornais não ficam muito atrás). Para obter mais cobertura dos meios de comunicação, os responsáveis do movimento pensaram que deveríamos fazer o seguinte:

  • Inovar. O nosso movimento tem inovado nas espécies que ajudamos e nos países que alcançamos, mas menos nas estratégias que usamos para chamar a atenção. Os defensores dos animais sugeriram que se experimentasse uma série de novas estratégias — e que fundamentalmente se estabelecessem mecanismos de avaliação para verificar se as estratégias funcionam de facto para acelerar o progresso em prol dos animais.
  • Fornecer dados credíveis. Os jornalistas precisam de informação em que possam confiar e, muitas vezes, não têm tempo para a encontrar. Os defensores dos animais podem ajudar reunindo estatísticas que mostrem tendências claras na pecuária industrial, por exemplo, como fez o Our World in Data.
  • Destacar o que é novo. Uma atrocidade moral duradoura não é, infelizmente, uma notícia. Os jornalistas precisam de algo com interesse noticioso. Algo como um novo estudo sobre a senciência animal ou sobre o impacto da pecuária no clima; um novo escândalo sobre a segurança alimentar ou a crueldade animal; ou novos acontecimentos como incêndios em explorações pecuárias ou uma iniciativa legislativa.
  • Assumir alguns riscos. À medida que o nosso movimento se profissionalizou, tornou-se mais cauteloso. Isto levou a uma redução bem-vinda das campanhas com o tema do Holocausto. Mas também reduziu o nosso interesse por um activismo arriscado, como denunciar as más empresas, como fizeram os defensores dos animais nas vitórias de relações públicas no passado, como o caso McLibel.
  • Fazer amizade com um jornalista. Os especialistas em relações públicas mais bem-sucedidos do nosso movimento construíram relações de confiança com jornalistas que fazem reportagens sobre a alimentação, a agricultura ou o clima. Mais defensores de animais poderiam contactar proactivamente os jornalistas para os ajudarem a encontrar informação fidedigna sobre as nossas questões.
  • Procurar ajuda profissional. Por exemplo, o Global Strategic Communications Council (Conselho Global de Comunicações Estratégicas) reuniu profissionais de relações públicas profundamente empenhados nas alterações climáticas, que ajudam os responsáveis a nível do clima, os académicos e os grupos de reflexão a obter cobertura positiva na imprensa.
  • Propor histórias. As melhores histórias têm protagonistas, antagonistas e conflitos. Nós temos os três. Por exemplo, algumas das histórias mais populares dos últimos tempos foram protagonizadas por corajosos denunciantes (VICE), por apologistas da indústria da carne (The New York Times) e por batalhas legislativas (Vox).

Influenciar os influenciadores

Muitas pessoas influentes já concordam connosco — só que não falam muito sobre isso. Uma solução fácil de alcançar pode ser ajudar estes influenciadores a envolver os seus seguidores na questão da pecuária industrial. Os responsáveis do movimento chamaram a atenção para alguns grupos de influenciadores:

  • Intelectuais reconhecidos. Yuval Noah Harari chama à pecuária industrial “um dos piores crimes da história”. Jane Goodall, Peter Singer, Martha Nussbaum, Nicholas Kristof e Rutger Bergman expressaram sentimentos semelhantes. Poderíamos ajudar estes e outros a escrever e a falar mais frequentemente sobre este tema.
  • Apresentadores de podcasts. Ezra Klein chama ao nosso tratamento dos animais da pecuária “uma falha moral definidora da nossa era”, Joe Rogan, o apresentador n.º 1 do Spotify, diz que é a “pior versão daquilo que os seres humanos são capazes de fazer”, enquanto que Sam Harris classifica-o como “um espectáculo de horror”. Podíamos arranjar-lhes convidados que os ajudassem a aprofundar o tema.
  • Estrelas de Hollywood. A Natalie Portman e o Joaquin Phoenix realizaram documentários sobre a pecuária industrial, enquanto o Paul McCartney e o Alec Baldwin narraram vídeos sobre o tema. Um grupo dedicado a Hollywood poderia envolver estes profissionais e os argumentistas para que os programas de televisão e os filmes incluíssem mais conteúdos sobre a pecuária industrial.
  • Influenciadores adormecidos. A Oprah dedicou um episódio à pecuária industrial, a Martha Stewart fez um vídeo a atacá-la e a Ellen DeGeneres organizou uma angariação de fundos para a restringir (esta última é uma ideia que já soou melhor). No entanto, há quase uma década que ninguém fala sobre a pecuária industrial. Poderíamos fazer mais para activar estes aliados do passado.
  • Influenciadores das redes sociais. Uma horda de influenciadores carnívoros, como o Liver King e o Carnivore Aurelius, tem andado ultimamente à caça de carne à base de plantas na Internet. Quer isto faça parte de um plano de mestre, por parte da indústria da carne ultra-processada, ou quer seja apenas um surto orgânico de instintos primordiais, no geral, não tem tido paralelo. Uma ideia seria criar um centro para ajudar os influenciadores das redes sociais simpatizantes a partilhar lições e mensagens eficazes. O que nos leva a…

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Potencialmente não será a mensagem mais eficaz. Fonte: os cantos escuros e profundos da Internet.

Alimentar a narrativa 

Um tema comum era o facto de precisarmos de uma narrativa melhor. (Não sei: “meat is murder” [“a carne é assassínio”] e “dairy is scary” [“os lacticínios são assustadores”] são bastante sugestivos). Neste ponto, os responsáveis do movimento tinham muitas ideias:

  • Falar sobre aquilo em que todos concordamos. A investigação do Animal Think Tank revelou que as mensagens que alguns defensores dos animais adoravam — como falar de especismo e opressão — afastaram o público em geral, tal como as propostas para taxar a carne ou subsidiar a agricultura à base de plantas. Em contrapartida, as mensagens sobre a senciência e o bem-estar dos animais obtiveram mais de 85% de concordância, e mesmo uma proposta para proibir a pecuária industrial obteve 49% de apoio — tal como aconteceu em inquéritos anteriores.
  • Sempre que possível, mantenha a mensagem positiva e centrada em soluções. A investigação da PaxFauna revelou que a razão mais comum para rejeitar a nossa mensagem era a futilidade — as pessoas sentiam-se sem esperança face à escala da pecuária industrial. Os defensores dos animais podem destacar as vitórias e as soluções. Isto também se enquadra no foco de interesse dos meios de comunicação social e nos algoritmos das redes sociais, que favorecem cada vez mais as histórias positivas. 
  • Explicar, não presumir. A maioria dos americanos ainda pensa que os animais da pecuária são bem tratados. Dois dos mais populares vídeos recentes do YouTube sobre a pecuária industrial são as explicações da Animals Australia sobre o abate de galinhas (7,2 milhões de visualizações) e a matança de pintainhos (2,1 milhões de visualizações). Ambos apresentam imagens violentas, mas incluem uma explicação factual daquilo que se passa. 
  • Ligar a pecuária industrial a outras questões — e incidir nos animais. Alguns responsáveis defenderam fortemente que nos devíamos concentrar na saúde e no ambiente para obter mais cobertura mediática. Outros defenderam fortemente que nos devíamos concentrar nos animais para garantir que a cobertura mediática que obtemos conduz a reformas para os animais, e não apenas, por exemplo, a uma mudança da carne de vaca para a de frango. Sou avesso a conflitos, por isso prefiro optar pelo meio termo: talvez possamos ligar a outras questões e manter os animais no centro das histórias resultantes.
  • Incidir na mudança social, não apenas nas dietas. Muitas das mensagens do nosso movimento nas redes sociais apenas exortam as pessoas a “tornarem-se veganas” (“go vegan”). Isso corre o risco de reduzir uma questão social importante a uma questão de dietas pessoais. Tanto o Animal Think Tank como a PaxFauna sugerem que comecemos a envolver as pessoas menos como consumidores e mais como cidadãos, que podem apoiar mudanças políticas e empresariais.

Depois de escrever o texto acima, parei para reflectir sobre o sucesso que o nosso movimento tem tido neste domínio. É impressionante: conseguimos enquadrar publicamente a questão como “pecuária industrial” (um termo apropriado, mas que não é o preferido pelo sector) e ganhámos o debate moral (poucas pessoas defendem agora que a pecuária industrial é ética; os seus poucos defensores argumentam em grande parte por razões económicas). Estou confiante que o nosso movimento está à altura do próximo desafio — tornar esta uma questão que a sociedade não pode continuar a ignorar.

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Publicado originalmente por Lewis Bollard na Open Philanthropy farm animal welfare research newsletter, a 27 de Junho de 2024.

Tradução de José Oliveira.


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