Em memória de Jane Goodall

Em memória de Jane Goodall (Arte digital: José Oliveira | Fotografia: Wikipédia)

O mundo perdeu a Dra. Jane Goodall. Aos 91 anos, continuava a viajar, a discursar, a exortar-nos a preservar o ambiente e a proteger os chimpanzés que a tornaram famosa em todo o mundo. A sua morte é uma perda não apenas para aqueles que a conheceram, mas para o mundo inteiro.

Ambos tivemos a sorte de conhecer a Jane, embora de maneiras diferentes, e ela mudou cada um de nós.

Peter Singer

Foi através do livro “In the Shadow of Man” (“Na Sombra do Homem”), que li logo após o seu lançamento em 1971, que me deparei pela primeira vez com o trabalho de Jane. A obra foi revolucionária ao mostrar os chimpanzés como indivíduos com personalidades próprias, capazes de pensar, resolver problemas e planear. Naquela altura, tinha acabado de me tornar vegetariano e começava a reflectir sobre a ética do modo como tratamos os animais. O trabalho da Jane era fascinante e teve uma influência profunda em mim. Faço referência ao seu trabalho no livro “Libertação Animal”, onde o utilizo para refutar o argumento de que, como os animais não podem usar linguagem para nos dizer o que sentem, não podemos realmente saber o que sentem. Jane demonstrou, através da sua observação atenta dos chimpanzés, que os sinais básicos que utilizamos para expressar sentimentos como dor, medo, amor, raiva, alegria e surpresa não são exclusivos da nossa espécie, o que nos permite reconhecer essas emoções em algumas espécies sem grande dificuldade.

Mais tarde, conheci a Jane pessoalmente num evento dedicado aos animais e fiquei muito feliz quando ela me disse que o livro “Libertação Animal” a tinha ajudado a tornar-se vegetariana. Quando a edição actualizada de 2023, “Libertação Animal, Hoje”, estava prestes a ser publicada, teve a amabilidade de a endossar, escrevendo: 

Tornei-me vegetariana quando li o livro «Libertação Animal» na década de 1970. Naquele momento, deixei de comer carne. Se tivesse lido esta versão revista, «Libertação Animal, Hoje», tinha-me tornado vegana muito mais cedo.

A última vez que me encontrei com a Jane foi em Maio de 2024, na sua casa em Bournemouth: uma grande casa vitoriana de tijolo, com um jardim coberto de vegetação, onde vivia com a irmã, a sobrinha e um galgo resgatado. Fui visitá-la com a Kasia, com quem apresento o podcast Lives Well Lived“. Normalmente, fazemos as nossas entrevistas online, mas a Jane pediu uma entrevista presencial. Ela tinha acabado de fazer 90 anos, mas disse-nos que tínhamos de encaixar a entrevista antes da sua partida para mais uma viagem pelo mundo, desta vez para visitar os 25 Institutos Jane Goodall espalhados pelo globo naquele ano. Essa determinação — incentivar os seus apoiantes a trabalharem para mitigar as alterações climáticas e proteger a natureza e todos os animais que nela vivem — resumia quem ela era.

Suzi Jamil

Desde o início da minha carreira que a minha missão tem sido levar gigantes intelectuais ao palco, pessoas cujas ideias possam moldar a sociedade e lembrar-nos de que provocar mudanças e impacto não é algo opcional, mas necessário. Entre todos os pensadores extraordinários com quem trabalhei, a Jane Goodall destacou-se. Ela era a personificação perfeita dessa missão: intransigente, autêntica e capaz de comover o público não só com o seu conhecimento, mas também com a força da sua presença.

Quando a trouxe à Austrália e à Nova Zelândia, em 2017 e 2019, vi auditórios inteiros a levantarem-se em lágrimas, não de tristeza, mas porque, através da Jane, tinham vislumbrado uma nova forma de compreender o nosso lugar no mundo. As suas palavras carregavam o peso de décadas de trabalho no terreno, mas o que mais me impressionou foi a sua natureza despretensiosa. Para alguém tão amplamente admirada, ela nunca se deixou abater pelo fardo da fama. Contentava-se com a simplicidade: bebia uísque directamente de uma caneca, recusava discretamente beber em copos de plástico e tinha uma queda por chocolate amargo com framboesa e mirtilo. Brincava comigo por causa dos meus saltos altos, incentivando-me a tirá-los e a ser eu mesma. A Jane era, em todos os sentidos, tal e qual como a imaginávamos: genuína, com os pés bem assentes na terra e extremamente forte.

As suas digressões eram actos de generosidade, nunca performances. Insistia que os lucros revertessem para o Instituto Jane Goodall, e não para si própria, pois a missão vinha sempre em primeiro lugar. Fazia digressões incansavelmente, ano após ano, e quando me disse que nos voltaríamos a ver dentro de três anos, acreditei nela. Mas depois veio a pandemia, e esse momento nunca aconteceu. É comovente que ela partiu enquanto ainda fazia o que mais amava: estar diante do público, a lembrar-nos do nosso dever para com o planeta e para com os outros.

Um dos momentos mais emocionantes das digressões era a exibição do vídeo da Wounda, uma chimpanzé que tinha sido reabilitada e finalmente libertada de volta à natureza. Pouco antes de correr para a floresta, Wounda virou-se e envolveu a Jane num abraço longo e emocionado. Ainda hoje choro ao ver esse vídeo. O mesmo acontecia com o nosso público: cidade após cidade, as pessoas ficavam comovidas, em silêncio e com lágrimas nos olhos. Esse momento captava a essência do trabalho da vida inteira de Jane: não apenas a ciência ou a defesa dos animais, mas também o amor e a crença de que a compaixão pode transcender as espécies. 

Acompanhar a Jane em digressão foi um dos maiores privilégios da minha vida. Ela mudou o meu percurso ao mostrar-me, tanto pela sua vida como pelas suas palavras, o que significa ser uma mulher que deixa a sua marca, que luta pela mudança e que não faz concessões quanto ao que realmente importa.

Juntos

Jane Goodall ensinou-nos a olhar para os animais de forma diferente, a viver com coragem e a dedicar a vida a algo maior do que nós próprios. O seu legado vive nas florestas que lutou para proteger, nos animais cujas vidas transformou e em todos nós que fomos tocados pelo seu exemplo.

Talvez nenhuma imagem capte melhor esse legado do que o momento com a Wounda, a chimpanzé que virou as costas à liberdade para abraçar a Jane. Esse gesto simboliza a compaixão, a confiança e o amor que definiram o seu trabalho e continuará a inspirar gerações.

Parece-nos bem homenageá-la em conjunto, pois, embora a tenhamos conhecido de maneiras diferentes, a sua vida levou-nos à mesma convicção: que a mudança é possível e necessária.

Se tiver alguma memória da Jane, partilhe-a connosco. O seu legado permanece vivo em todas as vidas que tocou, tanto humanas como não humanas.

Obrigado, Jane.



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