Será que a caridade deve começar em casa?

Por Alana Horowitz Friedman (Giving What We Can)

Ajudar, aqui ou lá longe? (Arte digital: José Oliveira | Fotografias: Lubo Minar e Greg Rosenke)

Examinar o impulso de doar localmente ajuda-nos a compreender melhor — e a lidar com — as nossas intuições morais.

Um princípio da doação eficaz é que o seu dinheiro pode geralmente fazer um bem maior quando faz doações para os lugares mais pobres do mundo. Por exemplo, Will MacAskill, um co-fundador do altruísmo eficaz e da Giving What We Can, calcula que o seu dinheiro fará cerca de 100 vezes um bem maior ao “beneficiar os extremamente pobres”, do que ao “beneficiar o cidadão típico dos Estados Unidos” (MacAskill 22), devido às grandes diferenças de rendimento entre países com rendimentos mais baixos e mais altos. E a avaliadora de instituições de caridade GiveWell concorda que cada dólar tem mais poder quando é doado internacionalmente.1

No entanto, esta análise é por vezes recebida com resistência, com perguntas como: Não deveríamos ajudar primeiro os membros da nossa própria comunidade? ou Não temos uma obrigação especial com as pessoas que nos são próximas?

É compreensível que alguns de nós possam sentir um forte impulso para doar localmente. Afinal, apesar dos países de rendimentos mais elevados não enfrentarem a pobreza na mesma escala que os países com rendimentos mais baixos (nos quais esta é muito mais extrema e muito mais mortífera)2 não há escassez de sofrimento, desigualdade e doença nos países com rendimentos elevados. E estes são os problemas que estão bem diante dos nossos olhos; podemos até conhecer pessoas afectadas por eles.

Mas parece-me que valerá a pena examinar mais de perto a ideia de que as nossas obrigações para com as pessoas necessitadas mudam com base na nossa proximidade em relação a elas. De onde virá este impulso para doar localmente? Como será que podemos compará-lo com o desejo de maximizar o nosso impacto e fazer o maior bem que podemos? Será que é possível conciliar estes dois tipos de doação dentro da abordagem do altruísmo eficaz? Estas são algumas das questões que gostaria de explorar

O impulso para priorizar doar localmente: explicações evolutivas

Durante grande parte da história, o nosso mundo estava limitado àqueles que estavam no mesmo local que nós. Os seres humanos passaram a viver de forma sedentária desde a Revolução Agrícola, que ocorreu há pouco mais de 12 000 anos. Apesar de ainda haver dúvidas sobre a data exacta em que começou a globalização, muitos situam-na por volta da época da viagem de Colombo à América (apenas há cerca de 530 anos), e outros datam-na muito mais tarde, começando nos anos 1800 ou mesmo depois da Segunda Guerra Mundial! (Claro que alguns também a datam mais cedo, mas a National Geographic considera “o exemplo mais precoce melhor conhecido” da globalização como sendo o da Rota da Seda, que ainda assim remonta a menos de 3000 anos atrás).

Portanto, parece provável que na grande maioria do nosso tempo a viver em comunidades, certamente não sabíamos muito sobre o que se estava a passar fora das nossas bolhas locais.

E mesmo quando começámos a saber, não podíamos fazer grande coisa a esse propósito. Só muito recentemente desenvolvemos as infraestruturas para produzir mudanças noutras partes do mundo. Assim, os nossos actos de “fazer o bem” limitavam-se a ajudar aqueles que se encontravam nas nossas imediações. Visto que essa limitação foi levantada há pouco tempo, não surpreende que os nossos impulsos morais (que provavelmente têm pelo menos alguma base na evolução) ainda possam estar desfasados.

No entanto, agora que podemos ajudar as pessoas de outros países, há muito boas razões para o fazer. De facto, de acordo com uma estimativa da The Lancet, custaria cerca de 9 mil milhões [BR: bilhões] de dólares para fornecer “cobertura total de serviços básicos de WASH e resíduos [água potável, saneamento, higiene e tratamento de resíduos] nas instalações de saúde pública existentes nos 46 países menos desenvolvidos designados pela ONU”. Isto representa menos de 2% do montante total que os americanos doaram à caridade em 2021. Direccionar dinheiro para causas de alto impacto no estrangeiro pode fazer um bem tremendo.  

O impulso para priorizar doar localmente: explicações psicológicas

Mas se estamos evolutivamente predispostos a doar localmente, então porque é que as catástrofes internacionais atingem tão intensamente a nossa sensibilidade moral? Por outras palavras, porque é que muitas pessoas estão tão motivadas para fazer doações internacionais depois de catástrofes, mas não estão motivadas para financiar organizações que aumentam a estabilidade em países com baixos rendimentos em alturas em que não há catástrofes? Talvez precisemos de examinar mais a fundo esta dissociação.

Eis uma explicação possível:

Parece provável que sejamos mais afectados emocionalmente por algo que seja inesperado, especialmente quando isso abala a nossa sensação pessoal de segurança.3 Este “elemento surpresa”, juntamente com a sensação de urgência e magnitude criada pela extensa cobertura mediática, talvez explique por que razão acontecimentos como a guerra na Ucrânia, a devastação de Porto Rico pelo furacão Maria, os enormes terramotos no Haiti e no Japão, há cerca de uma década, e catástrofes internacionais igualmente brutais, motivam frequentemente grandes fluxos de donativos de todo o mundo.

Em contraste, a pobreza extrema nos países de baixos rendimentos é um problema consistente e contínuo. Enquadra-se no nosso paradigma de “normal” e, como tal, não desencadeia o mesmo tipo de resposta emocional (embora devesse, se pensarmos realmente no facto de que milhares de pessoas morrem desnecessariamente todos os dias de causas evitáveis, apenas devido ao local onde por acaso nasceram).

Diria que a nossa resposta a catástrofes internacionais sublinha que realmente temos um sentimento de compaixão e de responsabilidade face àqueles que estão fora das nossas comunidades locais; só que para alguns4 pode ser necessário um choque para que o sistema (e/ou o sentimento de extrema urgência/magnitude promovido pela cobertura mediática) aceda a essa compaixão.4

Quando compreendermos como funciona a nossa psicologia (e que nem sempre é racional), talvez estejamos mais capacitados para estender a nossa compaixão às pessoas que não estão a sofrer e a correr riscos para a sua saúde e segurança por causa de uma catástrofe inesperada, mas sofrem antes numa base diária — simplesmente devido à falta de financiamento para a saúde e desenvolvimento global nos locais onde vivem.

É, em certo sentido, uma catástrofe da maior escala que o facto de o sofrimento em certas áreas do mundo seja muitas vezes considerado como o “pão nosso de cada dia”, quando muitos de nós estamos realmente numa posição bastante boa para o evitar.

Cosmopolitanismo: Afinal o que significa “local”?

Outra forma de pôr em causa esta preferência relativamente a ajudar primeiro a sua “própria” comunidade é expandir a definição daquilo que é a sua “própria” comunidade.

Por outras palavras, será que se considera um membro apenas da sua cidade específica, ou será que também se considera um membro do seu país? E que tal um membro da sua região específica do mundo? Será que se considera um membro da humanidade de uma forma mais geral — um cidadão do mundo? E que tal um membro de um ecossistema que inclui animais não humanos, para além dos seres humanos? O lugar onde decidimos traçar as fronteiras do que consideramos ser “a nossa comunidade” é algo arbitrário; não há um lugar claro para traçar a linha.

O filósofo Peter Singer popularizou uma ideia semelhante no seu livro The Expanding Circle, no qual observa que o projecto de decidir quem merece a nossa “consideração moral” mudou em termos de alcance ao longo da história. Escreve o seguinte:

“O círculo de altruísmo alargou-se da família e da tribo à nação e à raça, e começamos a reconhecer que as nossas obrigações se estendem a todos os seres humanos. O processo não deve parar por aí… O único ponto de paragem justificável para a expansão do altruísmo é o ponto em que todos aqueles cujo bem-estar pode ser afectado pelas nossas acções são incluídos dentro do círculo de altruísmo”. (Singer)

Esta expansão gradual das nossas intuições altruístas mostra que estamos lentamente a começar a pensar em nós mesmos como cidadãos do mundo — com uma responsabilidade face a tudo aquilo que está ao alcance do nosso impacto. Portanto, talvez seja a hora de expandir a definição de comunidade.

Encontrar os nossos laços globais através do “véu da ignorância”

Juntamente com a arbitrariedade de decidir onde termina a nossa “própria” comunidade, devemos também reconhecer a arbitrariedade do lugar onde esta começa — por outras palavras, a “sorte” de onde (tanto no tempo como no espaço) nascemos.

Em Uma Teoria da Justiça, o filósofo John Rawls defendeu a escolha de princípios de justiça “por trás de um véu de ignorância”. Essencialmente, propôs que, com o intuito de se remover os preconceitos que poderiam afectar negativamente a nossa capacidade de raciocinar de forma imparcial e justa, deveríamos imaginar que não sabemos nada sobre o nosso “lugar na sociedade, [a nossa] classe ou status social, nem [conhecemos a nossa] sorte na distribuição de bens e capacidades naturais, [a nossa] inteligência, força e assim por diante”. (Rawls 11)

Abracemos então a experiência mental de Rawl e imaginemos, por um segundo, que não sabemos de que “comunidade” faremos parte. Será que vamos nascer num país com altos rendimentos onde não teremos de nos preocupar demasiado com água potável e comida suficiente, e onde já erradicámos em grande medida assassinos como a tuberculose, doenças diarreicas, e a malária? Ou será que vamos nascer num lugar onde a pobreza extrema é comum, e onde é mais provável que as nossas vidas sejam encurtadas por toda uma série de condições mortíferas (mas evitáveis)?5

Ora, dado que não sabemos onde nos iremos encontrar, será que defendemos a criação de uma sociedade com fronteiras comunitárias bem definidas, em que as pessoas só ajudam outras que se encontrem na mesma comunidade que elas? E quais seriam as consequências de uma decisão deste tipo?

Parece provável que, se nascemos numa família empobrecida num país de baixos rendimentos, quaisquer recursos comunitários “locais” podem não ser suficientes para nos ajudar realmente a sobreviver. Afinal, com tantas dificuldades para atender às necessidades básicas, quem restaria na nossa comunidade “local” para nos estender a mão? Em contraste, seria preferível necessitar de recursos ou ajuda num país de rendimentos mais altos, já que muitos outros na comunidade estariam provavelmente bem capacitados para ajudar.

Devido a esta discrepância, se todos se limitassem a receber apenas ajuda das pessoas directamente à sua volta, a desigualdade global iria certamente agravar-se. E esse não é certamente o mundo que a maioria de nós escolheria!

Não tem de ser ou isto/ou aquilo

Permitam-me que esclareça: não estou a tentar defender que ignore a sua própria comunidade e que gaste todos os seus recursos noutros lugares. Em vez disso, defenderia que há decididamente a possibilidade de apoiar aqueles que nos rodeiam directamente e aqueles que estão mais distantes, mesmo dentro do âmbito do altruísmo eficaz.6 Eis a razão:

Na sua essência, o altruísmo eficaz consiste em aplicar um pensamento mais cuidadoso ao acto de fazer o bem, a fim de maximizar o nosso impacto. Esse compromisso de examinar mais de perto como podemos ajudar melhor os outros — e não necessariamente os frutos dessa análise — é o que os altruístas eficazes partilham entre si.Assim, enquanto alguns altruístas eficazes podem optar por doar apenas internacionalmente, outros podem doar tanto localmente como internacionalmente, e outros ainda podem decidir agir localmente mas doar internacionalmente. Ser um “bom” membro da comunidade local geralmente significa participar, e não apenas passar cheques, por isso doações menores aliadas a uma participação activa podem ser de facto mais impactantes num ambiente local (dependendo das necessidades da comunidade específica, é claro)! E dado que é muito mais prático voluntariar o seu tempo e esforços na sua comunidade local do que fazê-lo no estrangeiro, mas que é tão fácil enviar dinheiro para o estrangeiro como a nível nacional, agir localmente e, simultaneamente, doar internacionalmente não é uma má abordagem de diversificação.

O que fazer a partir daqui?

Independentemente da abordagem escolhida, a maioria das pessoas extremamente motivadas pela doação eficaz provavelmente concordaria que a actual percentagem de doações internacionais é demasiado baixa — apenas cerca de 6% do total de doações à caridade feitas por residentes nos EUA são doadas internacionalmente. Assim, há certamente espaço para examinarmos — e talvez contestarmos — alguns dos preconceitos que nos levam a despriorizar as doações internacionais, especialmente porque isso nos permite fazer um bem maior com cada dólar e por ser tão negligenciado quando comparamos com as causas locais.

Finalizo com isto: Se lhe fosse dado o poder de (com poucos custos para si) melhorar dramaticamente a vida daqueles cujo sofrimento é demasiadas vezes ignorado, fá-lo-ia? Ou perguntaria primeiro se eles vivem na sua proximidade?

Notas de rodapé
1.  É claro que uma organização que trabalha numa mudança política particularmente de alto impacto num país com altos rendimentos poderia fazer uma quantidade incrível de coisas boas, se a mudança fosse bem sucedida. O mesmo se aplica às organizações que tentam mitigar os riscos existenciais e catastróficos. O objectivo aqui não é dizer que doar internacionalmente é sempre melhor do que doar localmente, apenas que muitas vezes nos permite ampliar o nosso impacto, fazendo um bem maior com cada dólar que gastamos.

2. Para uma comparação entre pobreza global e pobreza nacional, veja Doing Good Better de MacAskill, p.184  

3. Veja este estudo de 2007 sobre como a estimulação auditiva inesperada provoca maior activação da amígdala, a parte do cérebro que regula a resposta emocional

4. A análise do Center for Disaster Philanthropy (Centro para a Filantropia de Catástrofes) de 2017 e 2018 sobre doações a catástrofes por parte das famílias americanas cita “a cobertura mediática como um factor que impulsiona doações a catástrofes”. Dito isto, a escala da catástrofe, bem como a ligação pessoal com esta, também foram os principais factores motivadores relatados pelos doadores de ajuda em casos de catástrofes. Veja aqui: https://www.issuelab.org/resources/34757/34757.pdf

5. Podemos fazer perguntas semelhantes sobre o momento em que nascemos. Será que iremos nascer numa época em que o clima ainda é propício à vida e a guerra nuclear é improvável? Ou iremos nascer numa época em que as mortes relacionadas com o clima são a norma e a guerra nuclear pode acontecer em qualquer dia? Fazer estas perguntas pode encorajar-nos a estender o nosso círculo de consideração face àqueles que virão (esperamos) depois de nós, e a doar para organizações que trabalham para salvaguardar o futuro a longo termo.

6. De facto, a GiveDirectly, uma das instituições de caridade que a nossa plataforma de doação apoia, desenvolve programas de transferência de dinheiro tanto nos Estados Unidos como internacionalmente.


Publicado originalmente por Alana Horowitz Friedman no Blog da Giving What We Can, a de 27 Setembro de 2022.

Tradução de Rosa Costa e José Oliveira.


Descubra mais sobre Altruísmo Eficaz

Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.

Um comentário sobre “Será que a caridade deve começar em casa?

  1. Pingback: – Será que a caridade deve começar em casa? | DISCUTINDO CONTEMPORANEIDADES

Deixe um comentário