Por Sjir Hoeijmakers (EA Forum)

• Estou a partilhar o texto abaixo como parte da Quinzena das Estratégias do AE. Penso que é importante discutir qual deve ser o papel da doação eficaz na comunidade do AE, pois (1) creio que as pessoas têm opiniões bastante diferentes sobre isto e (2) penso que há coisas concretas que devemos fazer de forma diferente com base nas nossas opiniões (partilho algumas sugestões no final deste post).
• Estas afirmações ou outras semelhantes foram feitas por outros em vários locais (por exemplo, aqui, aqui e aqui), mas pensei que seria útil reuni-las num só local para que as pessoas possam analisá-las criticamente não só uma a uma, mas também em conjunto. Este post não apresenta um argumento bem fundamentado para todas estas afirmações e sugestões: muitas são hipóteses sobre as quais eu gostaria de ver mais dados e/ou contestação.
• Declaração de interesses: trabalho na Giving What We Can (embora estas sejam as minhas opiniões pessoais).

Afirmação 1: Doar de forma eficaz e significativa deve ser normal na comunidade do AE

Mais concretamente, penso que seria desejável e viável para a maioria das pessoas que actualmente estão associadas ao AE doarem pelo menos 10% do seu rendimento a oportunidades de financiamento de elevado impacto (por exemplo, assumindo o Compromisso da GWWC) ou estarem em vias de o fazer (por exemplo, assumindo o Compromisso Experimental).^[1]

• Penso que isso é desejável por três razões: (1) a doação eficaz é — em termos absolutos — uma forma incrivelmente eficiente de converter recursos em impacto,^[2] (2) mesmo para os indivíduos que podem ter mais impacto directo através das suas carreiras, doar de forma eficaz é muitas vezes, e em grande medida, custo-eficaz marginalmente^[3] e isso não é incompatível com o seu impacto directo (daí valer a pena fazê-lo!)^[4]e (3) a doação eficaz, ao ser uma norma, traz muitos efeitos positivos para a comunidade do AE como um todo.^[5]
• Também penso que isso é viável. Há boas razões para algumas pessoas não doarem em determinados momentos das suas vidas — por exemplo, se isso deixar alguém com recursos insuficientes para viver uma vida confortável, ou se isso interferir fortemente com o impacto que alguém poderia ter com a sua carreira. No entanto, penso que estas situações sejam mais a excepção do que a regra na actual comunidade do AE,^[6] e mesmo nos casos em que isso se aplica, muitas vezes há formas de o contornar (por exemplo, excepções ao Compromisso para estudantes e pessoas que estão desempregadas).

Afirmação 2: Doar de forma eficaz e significativa não deve ser uma exigência na comunidade do AE

Penso que devemos encorajar positivamente todas as pessoas da comunidade do AE que podem doar de forma eficaz e significativa a fazê-lo, e elogiar as pessoas quando o fazem — mas não penso que isto deva ser um requisito (implícito) para que as pessoas se “sintam em casa” na comunidade, isto por um par de razões: 

• O AE tem a ver com a utilização dos recursos de cada um para tentar fazer o melhor possível, e a sua comunidade deve ser acessível a pessoas que queiram utilizar diferentes tipos de recursos para o fazer (por exemplo, dinheiro, tempo, rede de contactos e competências).
• Além disso, não queremos que a comunidade do AE seleccione, intencionalmente ou não, apenas pessoas com recursos financeiros significativos: estaríamos a perder muitas (se não a maioria) das pessoas de que precisamos para atingir os nossos ambiciosos objectivos, incluindo uma grande parte da população global que não está em posição (ainda) de doar significativamente.

Afirmação 3: Doar de forma eficaz e significativa deve ser suficiente para fazer parte da comunidade do AE

Penso que doar pelo menos 10% a oportunidades de financiamento de grande impacto (ou estar em vias de o fazer) deveria ser “suficiente” para alguém se sentir plenamente parte do projecto e da comunidade do AE, independentemente da sua carreira. Por exemplo, as pessoas que doam eficazmente devem sentir-se respeitadas e incluídas por outras pessoas na comunidade, devem sentir-se representadas pelos líderes da comunidade e sentir-se bem-vindas em eventos relacionados com o AE.^[7] Acredito nisto porque:

• Para muitas pessoas doar eficazmente, num determinado momento, pode ser a acção de maior impacto, marginalmente, que possam tomar.^[8] Na minha experiência, muitas pessoas na comunidade acreditam que a mudança de carreira quase sempre supera a doação eficaz em termos do impacto das acções individuais.^[9] Mas penso que esta é, pelo menos, uma questão em aberto, tendo em conta (1) a fasquia muito alta que a doação eficaz estabelece em termos de impacto absoluto (ver nota de rodapé 2), (2) pode não haver suficientes carreiras de alta absorção que superem a doação eficaz em termos de impacto, e (3) nem toda a gente está em posição de fazer uma mudança de carreira de alto impacto em qualquer momento da sua vida.^[10] (Gostaria que me contestassem neste ponto e gostaria de ver mais investigação sobre esta questão).
• Para muitas pessoas, penso que a doação eficaz tem sido e continuará a ser a via mais acessível para se tornarem parte da comunidade do AE e uma forma de se envolverem que, em última análise, aumenta as suas hipóteses de fazerem também uma mudança de carreira de grande impacto. Conheço bastantes exemplos concretos deste facto — incluindo algumas das pessoas indiscutivelmente mais produtivas da comunidade do AE — mas gostaria de ver esta hipótese devidamente testada e/ou ver mais dados sobre isto, caso existam.

Afirmação 4: Doar de forma eficaz e significativa não deve implicar que se faça parte da comunidade do AE

Penso que a doação eficaz tem o potencial de atingir inicialmente um grupo muito maior de pessoas do que apenas aquelas que se identificam imediatamente com os valores e as ideias da comunidade do AE em geral e (tal como referido acima) pode ser uma via mais acessível para as pessoas se envolverem com os princípios do AE sem os aplicarem às suas vidas de uma forma mais ampla (por enquanto). 

Como resultado, penso que é útil ter comunidades e organizações separadas centradas na doação eficaz que não se associem fortemente à comunidade mais alargada do AE, que forneçam recursos acessíveis de doação eficaz a pessoas que ainda não estão a par do AE em geral. É isto que várias organizações (por exemplo a GiveWell e o Founders Pledge) têm vindo a fazer há já algum tempo, e fico feliz por ver surgir muitas iniciativas novas neste domínio.

Algumas recomendações baseadas nestas afirmações

• Isto provavelmente é o mais importante: doemos todos então, individualmente, de forma eficaz e significativa, e defendamos esta causa!
  • Considere assumir o Compromisso da GWWC ou (se não estiver pronto) o Compromisso Experimental (foi assim que eu, pessoalmente, comecei a fazer doações eficazes); discuta abertamente as suas decisões de doação com outras pessoas; e defenda a doação eficaz entre os seus amigos e colegas membros da comunidade do AE (de uma forma positiva, construtiva e não forçando o assunto).
  • Na minha vida pessoal, fiquei surpreendido, pela positiva, com a facilidade com que parece ser possível ter impacto ao defender uma doação eficaz: muitas pessoas que estão prontas para doar eficazmente parecem precisar apenas de um pequeno empurrão positivo ou de um lembrete para assumirem o compromisso — isso faz com que dar esse pequeno empurrão seja uma acção altamente custo-eficaz (e também muito gratificante!).
• As organizações que visam construir as comunidades do AE e os grupos locais podem promover e elogiar a doação eficaz, por exemplo, ao incluí-la em cursos de introdução como uma utilização altamente custo-eficaz dos recursos (que não precisa de implicar uma mudança de carreira), ao organizar um evento temático de doação eficaz, de vez em quando, e ao fomentar uma cultura em que as pessoas sejam encorajadas a discutir e elogiar abertamente a sua doação eficaz. (Ver também este post de Jack Lewars.)
• Quando se discute uma área de causa numa apresentação, numa entrevista ou num podcast, as pessoas da comunidade do AE podem, por defeito, destacar a doação eficaz como uma forma de agir, recomendando um local relevante para onde doar, caso os membros da audiência queiram ajudar.
• Ganhar para doar como um percurso de carreira^[11] pode voltar a ser uma opção, por exemplo, poderiam criar-se comunidades ou organizações em torno desta ideia. Tendo em conta os erros do passado, é óbvio que devemos ser cautelosos nesta matéria: Não estou a sugerir que se deva insistir muito, mas a minha impressão é que ganhar para doar é actualmente mais subestimado do que sobrevalorizado (em parte devido a um esforço excessivo em tentar redimir erros do passado). 
• Na comunidade do AE, poderia haver lugares mais concretos para as pessoas que doam de forma eficaz e significativa, mas que não estão actualmente em posição de mudar de carreira. Por exemplo, o EA Global poderia apresentar conteúdos mais relevantes para essas pessoas, ou ser mais explicitamente centrado em carreiras, de modo a criar espaço para uma conferência/evento separado para esse grupo.
• Poderíamos criar comunidades de doação eficaz mais específicas para cada grupo ou local (como o recente Tien Procent Club nos Países Baixos) e descobrir as melhores formas de estas comunidades colaborarem e se coordenarem com a comunidade mais alargada do AE.^[12]

Como terá ficado claro acima, acredito que a doação eficaz é uma ferramenta poderosa e que descobrir como utilizá-la bem na comunidade do AE pode tornar possíveis coisas fantásticas, tanto em termos de impacto indirecto como directo. Deixo aqui o convite para que discordem de mim em relação a qualquer uma das afirmações anteriores e para que partilhem as vossas ideias e sugestões nos comentários. E se estivermos de acordo, utilizemos então esta ferramenta e façamos com que essas coisas fantásticas aconteçam!

Créditos

• Os meus agradecimentos a Jacintha Baas, Devon Fritz, Gert van Vugt, Luke Freeman, Michael Townsend e Katy Moore pelos seus contributos e comentários sobre versões anteriores deste artigo.
• Imagem de pré-visualização por Micheile Henderson em Unsplash

Notas

^{1. Os últimos dados que consegui encontrar sobre a quantidade de donativos dos membros da comunidade do AE são do Questionário do AE de 2020, em que apenas 20% das pessoas que responderam à pergunta sobre donativos declararam ter doado 10% ou mais do seu rendimento em 2019. O mesmo questionário também apurou uma mediana de 2.92% do rendimento doado por não estudantes empregados em tempo integral que ganhavam mais de 10 000 dólares. Espero que em breve tenhamos dados do Questionário AE de 2022 sobre este assunto. ^}

^{2. Penso que existe uma forte justificação teórica para este facto (por exemplo, como o dinheiro é fungível, o mercado filantrópico é bastante ineficiente e os conhecimentos sobre oportunidades de financiamento de grande impacto estão centralizados e acessíveis) e uma forte justificação empírica de que, marginalmente, as oportunidades actuais de financiamento são extremamente custo-eficazes (por exemplo a GiveWell ter um padrão de eficácia de 10x a distribuição directa de dinheiro e a Open Phil aumentar a sua fasquia para financiar esforços longotermistas). Penso que este argumento se torna ainda mais forte se considerarmos a relação de custo-eficácia de defender que os outros também doem eficazmente (incluindo o facto de isso ser mais fácil quando nós próprios doamos eficazmente). ^}

^{3. Para a maioria das pessoas, doar 10% do seu rendimento parece ser um sacrifício muito menor do que mudar de carreira (e requer muito menos esforço para o fazer bem, visto estarem já disponíveis conselhos de aplicação geral). ^}

^{4. Mesmo que mudar de carreira possa ter mais impacto no total, ainda assim pode valer a pena também doar 10%. Veja também o recente comentário de Luke Freeman sobre a narrativa dentro da comunidade do AE acerca da doação eficaz ter passado de “sim, e” para “não, em vez disso”. ^}

^{5. Por exemplo, ao diversificar as fontes de financiamento, para fomentar uma cultura de “praticar aquilo que se prega” e como recurso educacional e de recrutamento (uma vez que todos podem aplicar os princípios do AE e aprender sobre causas de grande impacto através de uma doação eficaz). ^}

^{6. Por exemplo, o questionário do AE de 2022 revelou que ~50% dos inquiridos estavam empregados a tempo inteiro e ~38% tinham frequentado as 100 melhores universidades a nível mundial. ^}

^{7. A minha impressão (em grande parte baseada na minha experiência) é que, actualmente, nem sempre é esse o caso e que há um grupo considerável de pessoas na comunidade que não acha que isso deva ser uma prioridade. ^}

^{8. Paradoxalmente, pode ser verdade que a maior parte do impacto da comunidade do AE venha de umas poucas mudanças de carreira de grande impacto, mas que, dentro da comunidade, a contribuição de maior impacto para a maioria dos indivíduos será a doação eficaz. Não estou a afirmar que seja este o caso, mas quero realçar a distinção entre o que podem ser as opções de maior impacto para qualquer indivíduo inspirado pelo AE e para a comunidade AE como um todo. ^}

^{9. Penso que este ponto de vista pode resultar, em parte, de discussões em torno do valor de ganhar para doar versus trabalho directo como percurso de carreira, mas (1) essas discussões aplicam-se muitas vezes apenas a uma pequena minoria de pessoas no topo do potencial de rendimentos (portanto, não se aplica à maioria das pessoas na comunidade do AE), (2) não penso que a resposta seja sempre que o trabalho directo é mais valioso (ver também a minha sugestão abaixo para reavivar o ganhar para doar), e (3) essas discussões são muito diferentes da pergunta “Qual é a melhor coisa que posso fazer como indivíduo?”, uma vez que nem toda a gente está em posição de mudar (imediatamente) de carreira. ^}

^{10. E, claro, mais uma vez, para as pessoas em que a mudança de carreira é a coisa mais importante em que se devem concentrar, isso não as exclui de considerarem também a doação eficaz (assumindo uma atitude “sim, e”). ^}

^{11. Estou a referir-me à escolha explícita da carreira para maximizar os seus donativos, e não “apenas” doar 10% na carreira actual. ^}

^{12. Se tiver interesse em criar algo deste género, contacte Grace Adams através do email grace.adams@givingwhatwecan.org, pois a GWWC poderá servir-lhe de apoio. ^}

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Publicado originalmente por Sjir Hoeijmakers no EA Forum, a 23 de Junho de 2023.

Tradução de José Oliveira.