Sobre a preocupação

Natal? Preocupação? Cala-te e multiplica! (Arte digital: José Oliveira | Foto: Dawid Zawiła)

1

Não sou muito bom no que toca a sentir a dimensão dos números grandes. Quando se começa a falar de números superiores a 1000 (ou talvez até 100), os números parecem simplesmente “grandes”.

Considere Sirius, a estrela mais brilhante no céu nocturno. Se me dissessem que Sirius é um milhão de vezes maior que o planeta Terra, sentiria que se trata de uma quantidade enorme de planetas Terra. Se, em vez disso, me dissessem que cabem mil milhões [BR. bilhões] de planetas Terra dentro de Sirius… continuaria a sentir que se trata de uma quantidade enorme de planetas Terra.

Os sentimentos são quase idênticos. Neste contexto, o meu cérebro admite, embora relutantemente, que mil milhões é muito maior do que um milhão e faz um esforço simbólico para sentir que uma estrela com o tamanho de mil milhões de Terras é maior do que uma estrela com o tamanho de um milhão de Terras. No entanto, fora do contexto — se não tivesse a referência de “um milhão” quando ouvi “mil milhões” — sinto que ambos os números são vagamente grandes.

Sinto algum respeito pela magnitude dos números quando escolhemos números realmente muito, muito grandes. Se dissermos “um seguido de 100 zeros”, sinto que isso é muito maior do que mil milhões. No entanto, não sinto (instintivamente) que seja 10 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 vezes maior do que mil milhões. Não sinto isso da mesma forma que sinto que quatro maçãs são o dobro de duas. O meu cérebro não consegue sequer imaginar uma diferença de magnitude tão grande.

Este fenómeno está relacionado com a insensibilidade à magnitude e é importante para mim, pois vivo num mundo onde, por vezes, as coisas que me preocupam são realmente muito, muito numerosas.

Por exemplo, milhares de milhões de pessoas vivem em extrema pobreza, centenas de milhões privadas de necessidades básicas e/ou a morrer de doenças. E, embora a maioria delas esteja longe da minha vista, ainda assim preocupo-me com elas.

A perda de uma vida humana, com todas as suas alegrias e tristezas, é trágica, independentemente da causa, e a tragédia não é menor só porque eu estava longe, ou porque não sabia, ou porque não sabia como ajudar, ou porque não era pessoalmente responsável.

Sabendo disso, preocupo-me com todos os indivíduos neste planeta. O problema é que o meu cérebro é simplesmente incapaz de pegar na quantidade de preocupação que sinto por uma única pessoa e multiplicá-la por mil milhões. Não tenho capacidade interna para sentir tanto. O meu “preocupómetro” pura e simplesmente não vai tão longe.

E isso é um problema.

2

Costuma-se dizer que a coragem não significa ser destemido, mas sim agir correctamente mesmo quando se tem medo. Da mesma forma, preocupar-se com o mundo não é ter um pressentimento correspondente à quantidade de sofrimento existente no mundo, mas sim agir de forma correcta, mesmo sem esse pressentimento.

O meu “preocupómetro” interno foi calibrado para lidar com cerca de 150 pessoas e simplesmente não consegue expressar a quantidade de preocupação que tenho com os milhares de milhões de pessoas que sofrem. O “preocupómetro” interno simplesmente não sobe tanto.

A humanidade enfrenta desafios de proporções inimagináveis. Hoje, há, no mínimo, milhares de milhões de pessoas a sofrer. Na pior das hipóteses, há milhares de bilhões (ou mais) de potenciais seres humanos, transumanos ou pós-humanos, cuja existência depende das nossas acções no presente. Todas as civilizações complexas que o futuro poderá trazer, bem como a experiência, a arte e a beleza que serão possíveis, dependem do presente.

Quando nos deparamos com desafios como estes, a nossa heurística interna relativa à preocupação — calibrada em números como 10 ou 20, atingindo o máximo em torno dos 150 — falha por completo na compreensão da gravidade da situação.

Salvar a vida de uma pessoa é um sentimento maravilhoso e, provavelmente, o sentimento de salvar uma vida seria tão bom quanto o de salvar o mundo. Certamente não seria um sentimento milhares de milhões de vezes mais intenso salvar o mundo, pois o nosso “hardware” não consegue exprimir um sentimento milhares de milhões de vezes maior do que o de salvar uma vida. No entanto, apesar da euforia altruísta de salvar uma vida ser surpreendentemente semelhante à de salvar o mundo, não se esqueça de que por trás desses sentimentos semelhantes existe um mundo de diferença.

Os nossos sentimentos internos de preocupação são lamentavelmente inadequados para decidir como agir num mundo com grandes problemas.

3

Houve uma mudança mental que ocorreu em mim quando comecei a interiorizar a insensibilidade à magnitude. É um pouco difícil de explicar, por isso, vou partir de algumas histórias.

Considere a Alice, uma engenheira de software da Amazon em Seattle. Uma vez por mês, estudantes universitários aparecem nas esquinas com blocos de notas, cada vez mais desiludidos à medida que tentam convencer as pessoas a fazerem doações para a organização Médicos Sem Fronteiras. Normalmente, a Alice evita o contacto visual e segue o seu caminho, mas este mês conseguem finalmente encurralá-la. Explicam-lhe o que é a organização e ela tem de admitir que parece uma causa bastante meritória. Acaba por lhes dar 20 dólares, por uma combinação de culpa, pressão social e altruísmo, e corre de volta para o trabalho. (No mês seguinte, quando os estudantes aparecem novamente, a Alice evita o contacto visual.)

Agora, considere o caso do Bob, que recebeu o Desafio do Balde de Gelo de um amigo no Facebook. Como se sente demasiado ocupado para participar no desafio, limita-se a doar 100 dólares à ALSA [Associação de Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA)] .

Agora, considere a Christine, que pertence à irmandade universitária Alpha Delta Pi (ΑΔΠ). A irmandade está envolvida numa competição com outra irmandade, a Pi Beta Phi (ΠΒΦ), para ver quem consegue angariar mais dinheiro para a Fundação Nacional do Cancro da Mama em apenas uma semana. A Christine tem um espírito competitivo e envolve-se na angariação de fundos, doando algumas centenas de dólares ao longo da semana (especialmente nos momentos em que a sua irmandade está particularmente atrás na competição).

Todos eles estão a doar dinheiro a organizações de solidariedade social, o que é excelente. No entanto, há algo de semelhante nessas três histórias: essas doações são motivadas, em grande parte, por um contexto social. A Alice sente uma obrigação e uma pressão sociais. O Bob sente pressão social e, talvez, um pouco de camaradagem. A Christine sente camaradagem e competitividade. Todas estas motivações são válidas, mas note que estão relacionadas com o contexto social e apenas marginalmente com o conteúdo da doação à caridade.

Se abordasse a Alice, o Bob ou a Christine e lhes perguntasse por que não doam todo o seu tempo e dinheiro a essas causas que aparentemente consideram válidas, eles olhariam para si de forma estranha e provavelmente pensariam que está a ser indelicado (com razão!). Se insistisse, poderiam responder que têm pouco dinheiro neste momento ou que doariam mais se fossem pessoas melhores.

No entanto, a pergunta poderia ainda assim parecer um pouco errada. Doar todo o nosso dinheiro simplesmente não é o que se faz com o dinheiro. Todos nós podemos dizer abertamente que as pessoas que doam todos os seus bens são fantásticas, mas todos sabemos que são um pouco loucas. (Loucas no bom sentido, talvez, mas loucas mesmo assim.)

Foi este o tipo de mentalidade que tive durante algum tempo. No entanto, há uma mentalidade alternativa que nos pode atingir de forma avassaladora quando começamos a interiorizar a insensibilidade à magnitude.

4

Considere o caso do Daniel, um estudante universitário. Pouco depois do derramamento de petróleo da plataforma Deepwater Horizon da BP, ele encontra uma daquelas pessoas com blocos de notas nas esquinas a solicitar doações para a World Wildlife Foundation. Estavam a tentar salvar o maior número possível de aves contaminadas pelo petróleo. Normalmente, Daniel rejeitaria a caridade com comentários como «Não é a coisa mais importante», «Não vale o meu tempo agora» ou «É problema de outra pessoa», mas desta vez Daniel tinha andado a pensar na sua dificuldade em lidar com números e decidiu fazer uma avaliação rápida da situação.

Imagina-se a caminhar pela praia após o derramamento de petróleo e a deparar-se com um grupo de pessoas a limpar o maior número possível de aves. Simplesmente não têm recursos para limpar todas as aves. Um pássaro jovem e patético cai aos seus pés, coberto de petróleo, mal conseguindo abrir os olhos. Ajoelha-se para o apanhar e ajudá-lo a subir para a mesa. Um dos limpadores de pássaros diz-lhe que não terão tempo para cuidar daquele pássaro, mas que ele poderia calçar umas luvas e provavelmente salvá-lo com três minutos de lavagem.

Daniel conclui que gastaria três minutos do seu tempo para salvar o pássaro e que também se sentiria feliz em pagar pelo menos 3 dólares para que outra pessoa gastasse alguns minutos a limpar o pássaro. Ao reflectir sobre o assunto, percebe que isso não se deve apenas ao facto de se ter imaginado com um pássaro coberto de petróleo à sua frente; sente que vale a pena gastar pelo menos três minutos do seu tempo (ou 3 dólares) para salvar um pássaro coberto de petróleo, num certo sentido vago e platónico.

Como tem reflectido sobre a insensibilidade à magnitude, espera que o seu cérebro interprete mal o quanto realmente se importa com um grande número de pássaros; não se pode esperar que o sentimento interno de preocupação corresponda à importância real da situação. Assim, em vez de perguntar simplesmente ao seu instinto o quanto se importaria de limpar muitos pássaros, ele cala-se e multiplica.

Milhares e milhares de aves foram contaminadas pelo derramamento de petróleo da BP. Depois de se calar e multiplicar, o Daniel percebe (cada vez mais horrorizado) que todo o seu interesse pelas aves contaminadas se limita a dois meses de trabalho árduo e/ou cinquenta mil dólares. E isso sem contar com a vida selvagem ameaçada por outros derrames de petróleo.

Considerando que se preocupa tanto com a limpeza do petróleo das aves, quanto se preocupa realmente com a pecuária industrial, para não falar da fome, da pobreza ou da doença? Quanto se preocupa realmente com as guerras que devastam nações? Com crianças negligenciadas e carenciadas? Com o futuro da humanidade? Na verdade, preocupa-se com essas coisas na proporção de muito mais dinheiro e tempo do que realmente tem.

Pela primeira vez, Daniel tem um vislumbre do quanto realmente se preocupa e do estado deplorável em que o mundo se encontra.

Isto tem o estranho efeito de fazer com que o raciocínio de Daniel dê uma volta completa e ele perceba que, na verdade, não pode preocupar-se com pássaros cobertos de petróleo a ponto de gastar 3 minutos ou 3 dólares — não porque os pássaros não valham o tempo e o dinheiro (na verdade, ele acha que há coisas produzidas pela economia que custam 3 dólares e valem menos do que a sobrevivência de um pássaro), mas porque ele não pode gastar o seu tempo ou dinheiro a salvá-los. O custo de oportunidade parece de repente muito alto: há muitas outras coisas a fazer! Há pessoas doentes, famintas e a morrer! O próprio futuro da nossa civilização está em risco!

Daniel acaba por não doar 50 mil dólares à World Wildlife Fund, à Associação ELA ou à Fundação Nacional do Cancro da Mama. No entanto, se lhe perguntar por que razão não está a doar todo o seu dinheiro, ele não o vai olhar de forma estranha nem achar que está a ser mal-educado. Ele ultrapassou a fase em que não se importava com nada e percebeu que a sua mente o enganava constantemente sobre a gravidade dos problemas reais.

Agora, percebe que nunca conseguirá fazer o suficiente. Depois de ajustar a sua insensibilidade à magnitude (e ao facto de o seu cérebro mentir sobre o tamanho dos números grandes), até as causas “menos importantes”, como a WWF, parecem, de repente, dignas de uma vida de dedicação. A destruição da vida selvagem, a ELA e o cancro da mama são, de repente, problemas para os quais ele estaria disposto a mover montanhas — se não tivesse finalmente percebido que há montanhas demais e que a ELA não é um obstáculo, e AHHH…DE ONDE É QUE ESTAS MONTANHAS TODAS VIERAM?

Na sua mentalidade inicial, a razão pela qual não abandonou tudo para trabalhar na ELA foi porque simplesmente não parecia… suficientemente urgente. Ou suficientemente tratável. Ou suficientemente importante. Por assim dizer. Estas são mais ou menos as razões, mas a verdadeira razão é que o conceito de “largar tudo para combater a ELA” nunca lhe passou pela cabeça como uma possibilidade real. A ideia representava uma ruptura demasiado grande com a normalidade. Não era problema dele.

Nesta nova mentalidade, todos os problemas são dele. A única razão pela qual não abandona tudo para trabalhar na ELA é porque há muitas outras coisas a fazer primeiro.

Normalmente, a Alice, o Bob e a Christine não se dedicam a resolver todos os problemas do mundo porque se esquecem de os ver. Se lhes lembrarmos, colocando-os num contexto social em que se lembrem do quanto se preocupam (esperemos que sem lhes incutir culpa ou pressão), então é provável que doem algum dinheiro.

Em contrapartida, o Daniel e outros que já passaram por esta mudança de mentalidade não se dedicam a resolver todos os problemas do mundo, pois há problemas demais. (Esperamos que o Daniel descubra movimentos como o altruísmo eficaz e comece a contribuir para a resolução dos problemas mais urgentes do mundo).

5

Não pretendo dar lições sobre o que é ser uma boa pessoa. Não é necessário concordar comigo para o ser.

Em vez disso, estou a tentar chamar a atenção para uma mudança de perspectiva. Muitos de nós passamos a vida a pensar que devemos preocupar-nos com as pessoas que sofrem longe de nós, mas não o fazemos. Acho que essa atitude está ligada, pelo menos em parte, ao facto de confiarmos implicitamente nos nossos “preocupómetros”.

O “sentimento de preocupação” geralmente não é suficientemente forte para nos levar a salvar freneticamente todas as pessoas que estão a morrer. Portanto, embora reconheçamos que seria virtuoso fazer mais pelo mundo, achamos que não o podemos fazer, porque não fomos dotados daquela preocupação extra virtuosa que os altruístas proeminentes devem ter.

Mas isso é um erro: os altruístas proeminentes não são as pessoas que têm um “preocupómetro” maior, mas sim as que aprenderam a não confiar no seu “preocupómetro”.

Os nossos “preocupómetros” estão avariados. Não funcionam com números grandes. Ninguém tem um que consiga representar fielmente a dimensão dos problemas do mundo. Mas o facto de não se conseguir sentir a preocupação não significa que não se possa preocupar.

Simplesmente não consegue sentir a quantidade adequada de “preocupação” no seu corpo. Lamento, mas os problemas do mundo são demasiado grandes e o seu corpo não está preparado para responder adequadamente a problemas dessa magnitude. No entanto, se decidir fazê-lo, pode continuar a agir como se os problemas do mundo fossem tão grandes quanto realmente são. Pode deixar de confiar nos seus sentimentos e passar a guiar as suas acções através do controlo manual.

6

Isso, é claro, leva-nos à seguinte questão: “O que raio fazemos, então?”

Ainda não sei ao certo. (Embora recomende o compromisso da Giving What We Can, da GiveWell, do MIRI e do Future of Humanity Institute como um bom ponto de partida.)

Acho que pelo menos parte disso vem de uma certa perspectiva desesperada. Não basta pensar que se deve mudar o mundo; é também necessário ter o tipo de desespero que advém da percepção de que se dedicaria toda a vida a resolver o problema que ocupa o centésimo lugar na lista de prioridades, se pudesse, mas não pode, porque há 99 problemas mais prementes que precisam de ser resolvidos primeiro.

Não estou a tentar fazer com que se sinta culpado para doar mais dinheiro; tornar-se um filantropo é realmente muito, muito difícil. (Se já é filantropo, tem o meu respeito e a minha admiração). Primeiro, é necessário ter dinheiro, o que é incomum; depois, é necessário investir esse dinheiro em problemas distantes e invisíveis, o que não é fácil de convencer o cérebro humano a fazer. A acrasia é um inimigo terrível. Mais importante ainda, a culpa não parece ser um bom motivador a longo prazo: se quiser juntar-se às pessoas que estão a salvar o mundo, prefiro que o faça com orgulho. Há muitas provações e tribulações pela frente e é melhor enfrentá-las de cabeça erguida.

7

A coragem não significa ser destemido, mas sim agir correctamente mesmo quando se tem medo.

Da mesma forma, enfrentar os grandes problemas da nossa época não significa sentir uma forte compulsão para o fazer. É tentar resolvê-los mesmo quando a compulsão interna falha por completo ao captar a magnitude dos problemas com que nos deparamos.

É fácil olhar para pessoas especialmente virtuosas, como Gandhi, Madre Teresa ou Nelson Mandela, e concluir que elas se preocupavam mais do que nós. Mas não creio que seja esse o caso.

Ninguém consegue abarcar a magnitude destes problemas. O que mais se aproxima é a multiplicação: encontrar algo com que nos preocupamos, atribuir-lhe um número e multiplicar. E depois, confiar mais nos números do que nos nossos sentimentos.

Porque os nossos sentimentos enganam-nos.

Quando fazemos a multiplicação, percebemos que combater a pobreza global e construir um futuro melhor exigem mais recursos do que os actualmente disponíveis. Não há dinheiro, tempo ou esforço suficientes no mundo para fazer o que é necessário.

Há apenas pessoas como nós, que estão a tentar de qualquer dos modos.

8

De facto, não é possível sentir o peso do mundo. A mente humana não é capaz dessa proeza.

Porém, por vezes, é possível ter um vislumbre.



Descubra mais sobre Altruísmo Eficaz

Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.

Deixe um comentário