Saloni Dattani (Scientific Discovery)

Este mês, assinei um compromisso de doar pelo menos 10% do meu rendimento vitalício a instituições de caridade eficazes. E esta semana, decidi doar 19% do meu rendimento anual, sendo mais de 80% destinados a uma instituição de caridade que trabalha na Nigéria para concluir um projecto de abastecimento de água e saneamento. O projecto estava a ser financiado pela USAID, mas esse financiamento foi subitamente cancelado pela administração Trump, sem aviso prévio.
Nos últimos meses, os programas de ajuda externa dos EUA foram cortados. É difícil compreender plenamente a dimensão destes programas. O maior deles, o PEPFAR, tem fornecido tratamento e prevenção do HIV a 20 milhões de pessoas por ano – principalmente em África, mas também noutros países do mundo – e estima-se que desde o seu início tenha salvo cerca de 25 milhões de pessoas. Foi lançado pela administração Bush em 2003. Outro exemplo é o PMI, também lançado por Bush, que distribui redes mosquiteiras e tratamentos contra a malária a dezenas de milhões de pessoas todos os anos e estima-se que, desde o seu início, tenha salvo mais de 10 milhões de vidas.
Muita gente desconhece a importância que os programas de saúde global têm tido para populações de todo o mundo, apesar de representarem apenas uma fracção mínima dos rendimentos dos países mais ricos.
Mesmo sem contar com o HIV/SIDA e a malária, já quase erradicámos a poliomielite em todo o mundo graças às campanhas de vacinação globais. As mortes por tétano diminuíram mais de sete vezes em três décadas. Milhões de crianças foram tratadas eficazmente contra o tracoma, uma infecção bacteriana dolorosa que pode causar cegueira. Mas muitos nunca ouviram falar destas conquistas. Talvez seja por isso que tudo isto possa parecer distante e abstracto, em vez de real e urgente.
As interrupções começaram no final de Janeiro, quando os EUA congelaram todos os programas de ajuda externa para realizar uma “avaliação trimestral“. Mas, desde então, muitos programas de combate ao HIV, à malária e outros esforços de saúde global foram cancelados de forma permanente. Os EUA também retiraram todo o seu financiamento à Gavi, organização que fornece vacinas contra a poliomielite, o sarampo, a difteria, o cancro do colo do útero e muitas outras doenças a milhões de crianças nos países mais pobres.
Dada a escala destes programas, o impacto da suspensão foi imenso. Com o PEPFAR a apoiar dezenas de milhões de pessoas por ano, centenas de milhares estavam a perder o acesso ao tratamento do HIV por dia.
Mas o que isto significa de facto? Em muitos casos, as clínicas tinham nas suas prateleiras o tratamento antiviral que salvava vidas, mas foi-lhes pedido que encerrassem. O pessoal da USAID foi despedido, os programas deixaram de ser pagos e a aquisição de mais material também parou. De repente, centenas de milhares de pessoas – todos os dias – descobriram que já não podiam receber a próxima dose do tratamento contra o HIV.
Em África, mais de 60% das pessoas que vivem com HIV/SIDA são mulheres. Cerca de um milhão estão grávidas. Mas os antivirais actuais são tão eficazes que, se forem tomados durante a gravidez, o risco de transmissão do HIV ao bebé é mínimo. Sem estes medicamentos, cerca de um quarto dos bebés nascidos de mães seropositivas também contrairia o vírus – e metade deles morreria antes dos dois anos de idade.
O congelamento significou que mais de mil recém-nascidos estavam a contrair o HIV todos os dias, porque as suas mães tinham perdido o acesso ao tratamento: sem aviso prévio, sem terem culpa e, muitas vezes, sem quaisquer alternativas.
Os economistas Charles Kenny e Justin Sandefur calcularam que cerca de 6000 pessoas morreriam por dia se a ajuda dos EUA fosse totalmente congelada, como aconteceu durante a “pausa de 90 dias”. Calculam que cerca de 3,3 milhões de pessoas morreriam se o congelamento se mantivesse durante um ano. Tenho dificuldade em compreender como é que isto pode acontecer a esta escala. É aterrador tentar imaginar.
Legenda: Vidas salvas pela ajuda dos EUA, por sector
Estimativas aproximadas de vidas salvas pela ajuda externa dos EUA em todo o mundo, anualmente
Vidas salvas pela ajuda dos EUA | Vidas potencialmente perdidas por dia durante o congelamento da ajuda
Custo por vida salva ($) | Ajuda anual dos EUA ($ milhões)
Source: How Many Lives Does US Foreign Aid Save? [Quantas vidas é que a ajuda externa dos EUA salva?]
Cerca de um terço das organizações locais que gerem o PEPFAR encerrou completamente as suas actividades durante o período de congelamento, por não terem conseguido assegurar a substituição dos fundos e do pessoal. Menos de 10% reiniciaram o tratamento semanas mais tarde.
Depois, de repente, a 10 de Março, a administração Trump anunciou que a avaliação estava concluída, ao fim de 35 dias úteis. “Tomaram uma decisão final em relação a cada adjudicação, de forma individualizada”, para cancelar 8 644 adjudicações do Estado e da USAID. Como disse o economista Charles Kenny, “isso dá uma adjudicação a cada minuto e 20 segundos”. Deve ter sido um processo de avaliação e tanto.
Vários cancelamentos foram contestados em tribunal. Em vários casos, os juízes decidiram que a administração tinha a obrigação legal de pagar os fundos. Uma decisão do Supremo Tribunal obrigou a administração Trump a retomar cerca de 2 mil milhões de dólares em fundos de ajuda externa para trabalhos já concluídos.
Desde então, apenas uma parte do financiamento foi reestabelecida. Parece que cerca de um quarto do financiamento dos programas de HIV foi cancelado de forma permanente. No entanto, como milhares de funcionários da USAID foram despedidos, mesmo os programas cujo financiamento foi restaurado continuam a enfrentar perturbações. Tanto o site principal da USAID como o portal de dados do PEPFAR continuam indisponíveis desde Abril. Há poucas semanas, foi pedido aos restantes funcionários da USAID que “triturassem o maior número de documentos possível e que reservassem os sacos para incineração quando o triturador não estivesse disponível ou precisasse de fazer uma pausa”.
Em certos casos, os projectos de investigação já tinham implementado novos métodos de testagem ou tratamentos e estavam a recolher dados, mas o financiamento para as fases finais, nomeadamente a análise dos dados, foi cortado. Isto significa que todo o estudo pode agora ser desperdiçado.
Durante semanas — por vezes diariamente — os repórteres do New York Times, do Washington Post e de outros jornais cobriram as situações de ruptura e eu pensei que mais pessoas e governos iriam reparar e agir.
No entanto, o governo do Reino Unido anunciou que também iria cortar a ajuda externa, apesar das promessas de campanha anteriores de a manter ou até reforçar. Em vez de assumirmos a nossa responsabilidade, no Reino Unido estamos a seguir o exemplo da administração Trump e a cortar ainda mais. Porquê?
De certa forma, continua a parecer inconcebível que deixemos milhões de pessoas morrerem por causas evitáveis. Ou que, de repente, retiremos um tratamento de que as pessoas dependem há anos, sem qualquer diálogo ou aviso prévio. A ajuda externa representa uma fracção muito pequena do rendimento nacional e os EUA, em particular, gastam relativamente pouco, mas, em termos absolutos, tem um impacto enorme nos países mais pobres.
Legenda: Quanto é que os dez maiores doadores dão em ajuda externa?
Percentagem do Rendimento Nacional Bruto (RNB) / Ajuda externa concedida em dólares
Fonte: Para muitos de nós, não custa muito melhorar a vida de alguém e podemos fazer muito mais por essa causa
Durante muito tempo, não pensei que os donativos pessoais fossem “suficientes”, por isso só ocasionalmente fazia donativos para a caridade.
Parecia-me que a melhor forma de fazer a diferença seria promover políticas, instituições e inovações que tornassem possível a mudança em grande escala: políticas orientadas para o crescimento e comércio que permitam aos países investir mais em cuidados de saúde e programas de saúde pública. Grandes programas apoiados pela ajuda externa, como o PEPFAR, o PMI e o Gavi, que apoiam milhões de pessoas. Inovações como novos antivirais ou vacinas contra a malária, que reduzam drasticamente o custo do tratamento, tornam possível salvar muito mais vidas com os mesmos recursos.
Mas isto fez-me perceber como é fácil tomar por garantidos os programas humanitários e de saúde global, e quero ajudar como puder. É urgente colmatar esta lacuna.
De que serve desenvolver novas tecnologias sem as infra-estruturas necessárias – as pessoas e os recursos – para as aplicar? É precisamente isso que está em risco neste momento. Se os programas forem encerrados agora, podemos perder anos de experiência acumulada e de infra-estruturas, e será extremamente difícil recuperá-los. Milhões de pessoas correm agora o risco de perder tudo isso.
Pior ainda é saber que estamos prestes a lançar novos tratamentos revolucionários – como um novo antiviral que previne a transmissão do HIV com uma eficácia entre 96 e 100% e que só precisa de ser administrado uma vez de seis em seis meses – que poderia ter ajudado a eliminar a transmissão do HIV; e novas vacinas contra a malária que poderiam salvar um milhão de crianças nos próximos anos.
A filantropia, por si só, não chega para colmatar esta falha — e pensar nisso é verdadeiramente aterrador. Imagine que uma em cada dez pessoas à sua volta vive com HIV, mas perdeu, de um dia para o outro, o acesso ao tratamento de uma doença mortal que pode matá-las em poucos anos. Repentinamente, esta é a realidade que milhões de pessoas enfrentaram durante o congelamento, e que podem continuar a enfrentar nalguns países.
Legenda: Percentagem da população que vive com HIV, 2023
via Our World in Data
Mas isso não significa que não possamos fazer nada a esse respeito. Não temos de ficar a assistir ao desencadear da maior quantidade possível de danos em milhões de pessoas. Podemos reduzir esses danos na medida das nossas possibilidades, e acredito que podemos manter alguns destes programas vivos.
Para começar, decidi doar quase 20% do meu rendimento este ano e comprometi-me a doar, pelo menos, 10% ao longo da minha vida. A nível individual, isto ainda é pouco face ao que é necessário, mas gostaria de partilhar convosco o meu pensamento sobre esta decisão.
Passei algum tempo a pensar na forma mais eficaz de doar esse montante este ano. Deveria repartir o donativo por várias organizações ou concentrá-lo numa só?
Neste momento, programas como o Foreign Aid Bridge Fund [Fundo de Apoio Transitório à Ajuda Externa] e o Rapid Response Fund [Fundo de Resposta Rápida] estão a ajudar a colmatar algumas das lacunas causadas pelos cortes. Considero o seu trabalho realmente importante. Ambos procuram identificar os programas mais custo-eficazes afectados pelos cortes e angariar donativos filantrópicos para lhes enviar. Caso esteja interessado em saber mais pormenores, Sigal Samuel escreveu um bom artigo na Vox sobre esses fundos.
Mas, recentemente, também assisti a uma palestra por parte de pessoas que trabalham no Project Resource Optimization, que têm experiência na análise de custo-eficácia e compilaram uma lista (em permanente actualização) de programas de grande impacto, financiados pela USAID, que foram afectados pelos cortes. Falam regularmente com responsáveis dos programas locais financiados pela USAID e com os parceiros de implementação para apurar que programas foram encerrados e quais podem ainda ser salvos.
Fiquei profundamente impressionada com o seu trabalho, com o rigor da sua abordagem e com a clareza quanto às necessidades mais urgentes do momento. Em vez de escolherem programas maiores ou mais conhecidos, elaboraram uma lista inicial de todos os programas que foram encerrados e que potencialmente salvam vidas em áreas da saúde global. Em seguida, reduziram-na a uma lista “urgente e validada” dos programas que consideraram ser mais impactantes e custo-eficazes — ou seja, com maior probabilidade de salvar o maior número de vidas com uma determinada quantia de dinheiro — e, acima de tudo, com risco iminente de encerramento. A lista está disponível online aqui.
Escolhi doar 16% do meu rendimento a um dos projectos mais pequenos dessa lista. Era um dos que me parecia ter maior probabilidade de, com o meu contributo, ultrapassar o limiar necessário para se manter em funcionamento.
O projecto que escolhi visava expandir o acesso à água potável e ao saneamento em certas regiões da Nigéria – uma intervenção básica de saúde global conhecida como “água potável” e que reduz a propagação de doenças como a cólera, o rotavírus, a poliomielite e muitas outras. Estas infecções podem ser letais e são, infelizmente, causas comuns da mortalidade infantil nos países pobres.
Este assunto também me toca profundamente porque acredito que a água potável e o saneamento continuam a ser bastante subvalorizados. Uma meta-análise recente, sobre a qual já escrevi, analisou programas de tratamento de água potável e os seus efeitos na mortalidade infantil, com base em ensaios controlados aleatorizados em 21 dos países mais pobres. Concluíram que o tratamento da água potável, como o simples uso de cloro, reduziu a mortalidade infantil em cerca de 30%, em média, nos estudos realizados nestes países.
É um impacto surpreendentemente elevado. Mas talvez nos pareça isso porque, vivendo em países com sistemas de esgotos em larga escala e torneiras de água potável por todo o lado, custa imaginar o quanto isto importa para quem não os tem.
Depois, doei mais 3% do meu rendimento a instituições de caridade custo-eficazes através da GiveWell, que também está a trabalhar para colmatar as lacunas provocadas pelos cortes. Num artigo recente, explicaram detalhadamente como estão a dar resposta, colmatando lacunas urgentes e expandindo as suas áreas de intervenção principais, com mais financiamento para a prevenção e tratamento da malária, testes de HIV e formação de profissionais de saúde.
(Declaração de interesses: trabalho na Our World in Data, uma das muitas organizações sem fins lucrativos que recebem algum financiamento da GiveWell).
Embora acredite que o financiamento é particularmente urgente neste momento, também acho essencial pensar para além dos próximos meses e apoiar estes programas a longo prazo. Foi por isso que também assumi o “Compromisso dos 10%” da Giving What We Can – o que significa que vou doar pelo menos 10% do meu rendimento vitalício a instituições de caridade eficazes – como um compromisso a longo prazo.
Gostaria de ter assumido o compromisso mais cedo. Caso este artigo o inspire a si, ou a alguém que conheça, isso fará uma diferença ainda maior. Caso você também consiga inspirar outras pessoas, talvez possamos, colectivamente, manter vivos mais programas deste tipo.
O impacto dos cortes no financiamento é especialmente grave neste momento, por isso, quanto mais cedo as pessoas agirem, melhor. Mas, ao mesmo tempo, penso que é importante agir estrategicamente, apoiando programas de impacto que, neste momento, prestam serviços essenciais e estão em risco de encerrar, assim como programas estáveis que podem expandir-se para estas áreas.
A longo prazo, penso que há muitas formas de contribuir. Os programas humanitários e de saúde global dependem de pessoas com competências diversas – desde quem presta cuidados de saúde directamente, até aos que gerem operações, tratam da logística, atribuem financiamento, fazem campanhas de sensibilização ou realizam investigação. Não é preciso estar na linha da frente nem doar grandes quantias, individualmente, para fazer a diferença.
Para além disso, gostaria de ver mais governos com a coragem moral de assumir as suas responsabilidades neste momento. As doações pessoais e filantrópicas representam apenas uma pequena fracção daquilo que os governos a nível nacional podem gastar. Não temos de ficar de braços cruzados a assistir ao desenrolar deste horror.
Para onde pode fazer um donativo
Segue-se uma breve lista de alguns dos locais para onde pode fazer donativos.
- GiveWell – Uma organização sem fins lucrativos que identifica e recomenda algumas das instituições de caridade mais custo-eficazes e baseadas em provas no domínio da saúde global. Em resposta aos cortes na ajuda internacional, deu prioridade ao preenchimento de lacunas urgentes no financiamento da prevenção da malária, rastreio do HIV e formação de profissionais de saúde.
- Project Resource Optimization – Uma equipa de investigadores e analistas de custo-eficácia que elaborou uma lista (em actualização constante) de programas de alto impacto financiados pela USAID e afectados pelo congelamento da ajuda. Contactam regularmente com os parceiros de implementação para identificar os projectos mais urgentes e custo-eficazes em risco de encerramento. Na sua página de “oportunidades de financiamento“, pode encontrar programas directamente afectados e fazer um donativo directamente, ou contactar a equipa de investigação para mais informações.
- Foreign Aid Bridge Fund – Um fundo filantrópico de emergência criado para apoiar programas que salvam vidas e cujo financiamento foi subitamente cortado pelo congelamento da ajuda externa. Visa colmatar lacunas de curto prazo para evitar o colapso de programas, tais como clínicas de HIV no Quénia e no Zimbabué, programas de saúde na Etiópia e habitações resistentes a catástrofes no Nepal.
- Rapid Response Fund – Outro fundo filantrópico de emergência lançado pela Founders Pledge e pela The Life You Can Save para apoiar rapidamente os melhores programas globais de saúde e de combate à pobreza que enfrentam quebras de financiamento repentinas. Fornece financiamento de emergência para em funcionamento intervenções de grande impacto durante os cortes na ajuda.
- Gavi – Uma parceria público-privada no domínio da saúde global que fornece vacinas a milhões de crianças em países de baixos rendimentos. Os EUA, que eram o seu maior doador (12%), retiraram todo o seu financiamento à Gavi, colocando em risco as campanhas mundiais de vacinação.
Se quiser assumir o Compromisso de 10% da Giving What We Can, como eu fiz – e comprometer-se a doar pelo menos 10% do seu rendimento vitalício a instituições de caridade eficazes – pode fazê-lo aqui.
Também disponibilizam um Compromisso Experimental, mais flexível, entre 1 e 10% do rendimento durante um período de tempo fixo (como um ano), para quem quiser começar por dar um primeiro passo.
Caso seja necessário repetir: este artigo, tal como toda a minha newsletter, reflectem exclusivamente as minhas opiniões pessoais e não as dos meus empregadores.
Publicado originalmente por Saloni Dattani na Scientific Discovery, a 11 de Abril de 2025.
Tradução de Rosa Costa e José Oliveira🔸.
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